Friday, March 31, 2006

condição irreversível

os loucos podem fazer a poesia,
os doentes, como eu, podem apenas ser feitos por ela.

Thursday, March 30, 2006

-sem título-

dóis-me
e há memórias que insistem
e sonhos que persistem
mesmo depois do verão.

Monday, March 27, 2006

novembro e o mar

estávamos no mês de novembro. soprava um vento que nos descia pelo corpo como descia a encosta sul da serra. o combinado era encontrarem-se na praia, longe de todos. em Novembro as pessoas não vão tanto à praia, ainda que a raiva das ondas e a espuma branca da sua rebentação pulverizante seja ainda mais bela contra o céu carregado e cinzento. a serra desce de encontro ao mar mesmo ali naquela praia e as árvores ainda beijam a areia com alguns dos seus ramos, evidenciando uma palete de cores invernais de vegetação, areia, mar e céu.

o sol só raiava ao longe, num intervalo das nuvens compactas, que deixava passar um leque de feixes luminosos, clareando o mar ao longe, como se fossem dedos de deus.

ali na areia, esperava-a.
ela descia com calma as escadas que se encaminhavam íngremes para a praia gelada, envolvida numa neblina esparsa que murmurava novembro. e o som à volta era o das ondas que batiam e o do vento que soprava frio nas nucas de ambos.

ela desce, aproxima-se e senta-se ao lado dele. a combinação era de ali se encontrarem, não havia nenhum outro propósito. olharam-se, no recorte contra o céu cinzento e os cabelos dela apontavam o sul, ondulando sobre o seu rosto. os olhos encontraram-se e fixaram, por momentos, a vida de cada um.

ele não podia estar ali. por isso, aquele encontro não passaria dum encontro de olhares e vidas, numa concorrência pontual de duas cujos caminhos não mais se cruzariam.

o olhar dela buscou-lhe o ser. como quando se faz amor. só se ouviram duas frases:

- olha o mar, que os teus olhos me apertam.
- posso olhar, no mar vejo os teus olhos.

Wednesday, March 15, 2006

a casa com relva

raiavam as primeiras luzes da manhã sobre o orvalho que descansava na relva. deixava em casa praticamente tudo. naquele dia não ia precisar da carteira, nem das moedas, não ia precisar do telefone, nem da mulher. não ia precisar da companhia da filha, nem do fiel sirocco, não ia precisar sequer dos chinelos e trazia com ele só o corpo. a relva estava fresca, fria até. os seus pés enterraram-se nela e o seu corpo sofreu um pequeno arrepio, enquanto a alma se lhe encolheu. encolhia-se para tomar balanço, para ganhar coragem de encher o peito logo a seguir. e ali, com os pés na relva enfiados, com o orvalho fresco de primavera a cobrir-lhe o calor saído da cama, olhou a relva e o céu. respirou. entrou em casa e pensou: pronto.

Thursday, March 09, 2006

assassinato político

romper grilhões e derrubar prisões,
levantar o rosto ao vento do futuro,
digno olhar frente aos batalhõees
que das armas cospem ódio de metal duro.

e não cair uma só lágrima
porque o que fica é liberdade
respirada nas palavras da poesia
da luta travada por acabar,
de um novo céu por conquistar.

De regresso ao zero...

Ode triunfal???

O corpo já pede descanso à dor que se torna insuportável, esta, prima pela transparência, tal não é a vontade... "Por favor pára!" arranha desesperando o coração. Mas o pedido de clemência cala-se quando não deseja ser ouvido, e, mais uma vez a razão cai no vazio. Entretanto o mundo canta a sua mecânica, pára, arranca, apressa-se, abranda, mas corre sempre no sentido da habituação. "Ergue-te, ergue-te agora que ninguém vê, caminha e desiste ao teu fado, mas porque podes, não por ser a tua única opção.

A natureza da incompatibilidade do ser, e, o efeito do vinho carrascão num Sábado longo de mais!

A mecânica rotineira padece da sua repetição, acabando por confrontar-se sempre na mesma maneira! Consome-se e tenta aplicar-se em qualquer contexto, não consegue!

Lamúrias da dormência...

O Sono do Monstro

Olho, vejo, cheiro... até consigo sentir,no entanto espero neste gelo. O grito tenta esgueirar-se, percorre-me as entranhas,e,continua a estranhar, de tão entediado que está acaba por sair silenciosamente... mais um manifesto de dor? Desilusão? Talvez! Outra palavra nasce em mim, acredito no seu silêncio. Sinto-me triste, não por ti, não por nós, mas por mim, por já não conseguir sentir!

Wednesday, March 08, 2006

ascende-te

mães da humanidade,
a quem os deuses chamaram
um dia filhas inferiores,
fizeram com suas mãos e próprio sangue
reescrever escrituras,
vencendo a dignidade à imortalidade.

e hoje contemplamos cada uma,
numa vénia às deusas de si próprias que caminham entre nós,
rumo à ascenção emancipada.

Monday, March 06, 2006

um feixe de luar

à minha frente, desenhou-se uma estrada. no exacto momento em que deixei de a procurar.

Thursday, March 02, 2006

fotografia I

o homem era pequeno. ao meu lado, ficavam-me seus olhos à altura do meu queixo. largo também. a barba feita, mesmo estando em greve contra as condições de trabalho e contra as ameaças do patrão da mina. chovia. chovia muito. desde a rotunda mais próxima até ali, enchiam-se as ruas de carrinhas e autocarros azuis escuros, com matrículas da guarda nacional.
os guardas esses, em posição ingrata faziam fila bem organizada do outro lado da estrada, pelas minhas costas. ali, em frente ao homem, de 32 anos desgastados por 15 anos de fundo de mina, um pequeno telheiro resguardava-nos da chuva. atrás dele, insinuava-se um fogareiro de brasas acesas aquecendo a ração para a noite longa de vigília combativa. os guardas, bem comportados, aparentemente, eram fustigados por uma chuva que recebiam, serenos, sobre as sobrancelhas que pingavam.

o homem falava agradado com a solidariedade dos seus camaradas, mostrando a cada gesto o peso da laboração contínua. os outros, à volta, passavam e ofereciam-me mais um copo de vinho tinto. a guarda não os incomodava, ainda que pudesse ser essa a intenção de quem a mandou para lá. na verdade, tinham outras coisas com que se incomodar.

o homem falou-me da filha que não via, da mulher que deixava frequentemente ainda ou já a dormir quando saía de casa para a mina. a chuva não parava ali mesmo ao lado. a guarda não desmobilizava. a boca da mina desenhava-se incontornavelmente nos olhos de cada um que passava perto da conversa. o homem tornou a falar da filha. e da mulher. uma gota de chuva humana pintou-lhe o rosto seco, salgando-lhe a face temperada pela vida.