Wednesday, April 11, 2007

a luz e as sombras

I

As suas mãos tremiam ao segurar a caneta e o dia ameaçava diferenças. A sua consciência estava tranquila, não tinha colaborado com a ditadura, julgava. No entanto, lá fora, o plenário de trabalhadores em fervorosa algazarra, julgava por si próprio quem tinham sido as vozes do fascismo.

Dias antes, o mundo tinha mudado. Na pequena terra, o poder da escuridão estava ruído e a luz avançava intrépida sobre a terra. O mar acalmou quando o povo triunfou e a cor dos edifícios mudou. Por todas as fachadas, abriram-se janelas e portas para deixar entrar a revolução e deixar abalar o mofo que, de tanta acumulação, prendia a respiração.

Ali, no gabinete, porém, a revolução pintava-se com as cores do medo. Nas ruas, cada um trazia jornais dantes proibidos debaixo do braço, abundavam ícones vivos e mortos e existia uma esperança a pairar no ar. Uma esperança tão justa e genuína que todas as ruas se transformavam em campos de liberdade, com um cheiro de terra molhada, como aqueles que cheiramos apenas nas madrugadas após uma noite de chuva sobre os campos.

Em algumas, poucas, casas havia famílias que pareciam ninhadas de ratos, nervosas, amedrontadas, escondidas. Famílias que teimavam manter pintado de negro o interior das casas, onde o bafio era bem-vindo e onde as dispensas nunca tinham conhecido o vazio. Era um medo conspirativo que viviam, não queriam perder o que tinham roubado ao abrigo da sua própria lei. Criminosos escondidos.

A caneta não conseguia assinar nada mais. O dia estava prestes a desabar e pouco faltaria para que colapsasse ali mesmo sobre ele. Olhou de soslaio para o exterior. No pátio havia mãos levantadas, punhos cerrados, nuvens de gritos determinados. Apercebeu-se de que um deles se elevava sobre um pequeno palco improvisado com mesas do estaleiro e que anunciava algo. Nesse momento, o seu escritório, a sua pequena morada, escureceu ainda mais, como se o ar se tivesse tornado sólido, num inexplicável fenómeno de sublimação. Lá fora, apercebia-se, houvera pequenos momentos de silêncio. O seu último olhar viu centenas de mãos levantadas apontando o céu. Eram todas as mãos o tomar controlo do seu destino. Eram votos.

Ele nunca colaborara com a ditadura, pensou. Mas esqueceu-se que naqueles dias o julgamento era colectivo e material, o seu pensamento não podia ser juiz em causa própria, ninguém o permitiria. Foram muitos os anos nocturnos. Foram vidas que rastejaram na lama. Lá fora, facilmente o silêncio foi considerado cooperação. Para eles, aqueles que calaram, colaboraram. De facto, assim, era culpado.

II

No seu último lance de coragem tímida ainda lançou o olhar novamente através da vidraça. Lá fora, o verde das folhagens que ladeavam a vedação, carregara-se. Houve mesmo um momento em que as árvores cresceram e algumas inclinaram-se mesmo para testemunhar a libertação dos homens. Afinal de contas, mantiveram-se sempre ao lado deles. Muitas lhes deram abrigo em dias difíceis. E não tinham carinho nenhum pelo cinzento que a pouco e pouco as matava, numa condição humana que poucos lhes reconheciam. O sol lá fora espalhava-se em raios deslumbrantes, barrava alegremente nos sorrisos abertos.

O ar estava límpido em contraste sobrenatural com a viscosidade do ar do escritório onde se debatia para respirar. Foi quando voltou o olhar para dentro, um pouco perdido, de coração aos pulos frenéticos, que viu o tecto ser nuvem carregada e mal teve tempo de se enfiar debaixo da secretária para se proteger da queda de abundante chuva.

Encolhido, abrigava-se como um miúdo pequeno num buraco, de uma chuva impiedosa que lhe vinha anunciar a sua própria consciência. Mal podia tirar de fora a cabeça, tal era a força da chuva. Tudo estava exposto, as fotos de família entre os papéis e documentos de trabalho espalhados pela secretária, o sobretudo deixado à porta no cabide.

O ar ensopava-se e o chão já reflectia na superfície arrepiada pelas gotas o céu negro que tinha tomado o lugar do tecto branco. A planta que morrera no parapeito da janela há alguns anos atrás, começou a erguer-se e as folhas murchas e mirradas abriram-se novamente, ali no limbo. O vidro da janela separava dois cenários opostos e presenciava pela primeira vez a troca espacial dos fenómenos. Lá fora, o mundo acordava para um sol e um sorriso que há muito a terra não via. Cá dentro, a chuva atirava-se ao chão e destruía a paz balofa dos gabinetes. O vaso, antigo e velho, e a planta a que dava morada, estavam mesmo ali, sempre estiveram ali. Mas antes tudo estava nos sítios errados. Agora acordara a velha planta. Um dia, quem sabe, dará flor.

Tuesday, April 03, 2007

a minha pátria não é um desenho no chão.