Monday, May 21, 2007

distância do futuro

eu quero o verbo inconstante
e a voz selando o tempo
em sussurro permanente.

e ser sempre manhã,
mesmo de noite.

quero tanto tanto tanto
que o futuro não seja distante.

Friday, May 11, 2007

os privilégios dos trabalhadores

ali estavam os cálculos em cima da secretária. acabados. a matemática batia certo, a física também. os resultados apareciam como colunas e colunas de algarismos e alguns com letras. continham em anexo o relatório da litologia e da geometria, o grau de degradação da rocha, a sua mineralogia e fracturação. a estabilidade da futura galeria era garantida. ele recostou-se, finalmente, na cadeira, em sinal de cumprimento da tarefa.

no seu gabinete, o tecto estava bem firme. e nenhuma carga explosiva iria mudar isso.

fez a entrega ao estafeta interno da empresa. embrulhado num plástico transparente seguiam os cálculos para a próxima explosão de uma das frentes da mina. este era um dos seus primeiros trabalhos na empresa, depois de ter passado uns poucos de anos na ajuda a um velho engenheiro que se reformara. esse, coitado, um homem mole. embora experiente e competente, não fazia nada sem ouvir os trabalhadores. também… era já velho, podia temer o erro. compreendia a sua fraqueza, embora ele, jovem e forte, decidido e competente engenheiro, não estivesse disposto a submeter-se à discussão com os mineiros. braçais tanto quanto ignorantes em matéria de estática, de pressões e dinamitagem.

lá vão os papéis, de mão em mão. terminarão no fim da linha, no operador lá em baixo onde a luz não chega. não chega a luz, mas chega a máquina ruidosa, as brocas gigantes, as lanternas das pequenas e das grandes. lá em baixo, onde o sol nunca se deu a conhecer porque o inferno não tem sol, há suor em vez de cálculos, amizade em vez de soberba.

- fodasse, o gajo diz que a carga é pa meter aqui!
- o gajo tá parvo… vou dizer-lhe que não.

sem que soubessem, o sol cá em cima ainda espreitava e algumas pilhas de minério lavado emitiam pequenas estrelas de brilho. granitos aos montes. pegmatitos aos blocos, grandes.

- oh, senhor engenheiro, esta merda não vai dar. não se vê logo que fica lá alguém debaixo?
- não tenho necessidade, nem ordens, para discutir os cálculos convosco.
- então venha lá abaixo connosco pôr a carga, que é para ver com os seus olhos o que lhe digo.
- não tenho de ir lá abaixo, já fui lá ao fundo a semana passada.

“que filha-da-puta arrogante… está-se mesmo a ver que isto vai dar merda.” pensou, robusto e determinado rumo ao fundo da mina. a terra vai gemer outra vez. ele podia não perceber os números da estática, não compreender as forças, as tensões e as pressões. mas afinal de contas conhecia a pedra, vivia-lhe no ventre dia e noite, se dia e noite houvesse no fundo de mina. ele e os outros como ele falavam com a pedra. era perante ela que por vezes corriam lágrimas de saudade da família, e perante ela pingavam o suor rude e incessante do trabalho. a força dos homens ali em baixo misturava-se com a força da pedra. uns partiam a outra, mas essa relação era como um abraço. homem e pedra, trabalhador e matéria-prima. pelo meio a ferramenta, propriedade do patrão.

de rosto carregado, inexplicavelmente rubro, desceu até à frente da mina que ainda hoje explodiria. os outros camaradas perceberam bem o resultado da conversa na superfície. as máquinas começaram o seu trabalho. as cargas foram colocadas no exacto sítio previsto pelo engenheiro. tudo no lugar, a dinamite pesada a rigor e ajeitada como devia de ser. a engrenagem da explosão arrancara. a detonação era feita cá de cima, pois claro, por motivos de segurança no trabalho.

a terra gemeu, rugiu e tremeu. um estrondo abafado e um pó que ninguém viu. uma nova frente de mina e uma nova galeria sob o chão agora se desenhavam.

a estabilidade garantida pelos números e papéis do engenheiro estava comprovada! a galeria não abateu. os mineiros de todos os patamares e profundidades entreolharam-se.
bem, tudo normal. daí a pouco tempo, poderiam descer ao novo espaço criado pela dinamite.

era ainda noite quando, dias depois, o primeiro homem chegou para retirar os frutos da explosão. tudo foi simples, rápido e certeiro. a pedra esmagou-o ignorando a sua dor. o seu corpo nem enchia o caixão que, por motivos de respeito à família foi desenhado como se fosse para um corpo inteiro e intacto. a vila inteira chorou mais um mineiro.

nas galerias da dor cá em cima na superfície, o negro vestia as mulheres todas. lá em baixo a extracção continua. o engenheiro sentiu a sua alma fugir-lhe entre os dedos.

Wednesday, May 09, 2007

a ti

dizem que com elas podias tocar piano,
saltar por cima de negras e brancas,
de um dó ao outro, sob o Sol.

(olhas as mãos agora)

dizem-te que brilhas, como as estrelas.
e tu, sempre brilhando entre os sorrisos que acendes,
apagas-te.

com as pontas dos dedos

as tuas mãos finas são brancas,
e desenha-se o brilho dos rios
nos teus olhos.

são noites,
são dias,
a quem ajoelho em oração irreligiosa.

são as pontas dos meus dedos
nas tuas ancas.

contradição

como um dia em que o mar é escuro
e o ar carregado mas puro,
e a noite cai calma
como uma mão sobre a alma.

são contradições do corpo,
o negro, o branco,
e os beijos.

Saturday, May 05, 2007

abraço


da ranhura, da estreitura, do enquadramento infeliz
vejo a rua
vejo a rua
vejo a seguir-me sem ti.

vejo vontade
vejo
à minha frente
estenderem-se memórias de outra gente.

dizes que é cedo, que ainda há tempo.
o meu relógio é lento.

vejo o teu corpo sobre a minha mesa.
vejo o querer
o desquerer

vejo o partir e o despedir.

mas enquanto me cedo
--relógio lento--
lambe-me alma,
ainda há tempo.


(poema a 2 mãos - languidez e pedras)