Thursday, February 12, 2009

conto da chuva

Ontem a chuva tinha parado de cair.

Todos esperavam agora que os raios do sol viessem esplêndidos espalhar-se sobre o mundo. Depois da guerra, a terra massacrada fustigou a sua superfície com cinquenta anos de chuva incessante. Não fora o castigo divino que os padres apregoaram, não fora nenhum flagelo à força. Foram apenas as mágoas que já soçobravam das dores exageradas, da estupidez prolongada.

Ao princípio, buscámos as respostas em quem as vendia, depois em quem as dava, e só passadas quatro décadas de chuva, as deixámos de procurar. Foi nesse dia magnífico, exactas cinquenta primaveras depois, que os homens e as mulheres de todo o mundo se deixaram de cobrir sob os guarda-chuvas, oleados e impermeáveis. Foi quando deixaram de vestir as entretanto inovadoras soluções contra a água permanente. Foi quando sentiram a água nas suas peles e, de facto, se molharam, que as nuvens começaram a dissipar.


Parecia uma madrugada. Muitos houve que nunca conheceram o sol ao longo da curta vida. Outros tantos já pouco se lembravam do seu efeito dourado, do seu poder e do seu sopro quente. Muitos nunca o tinham visto e dele sabiam pelas fotografias e filmes do passado, ou pelos livros da escola que o haviam agora relegado para as últimas páginas porque era patrocinados pelas empresas que fabricavam e vendiam os mundialmente famosos oleados.


Foi quando os homens e as mulheres, depois de cinquenta anos resguardados, decidiram sentir, tocar e deixar cair a chuva sobre si próprios que ela, como que com amor, deles se começou a despedir. Começou por cair mais leve, as nuvens tornaram-se de tal forma menos espessas e mais claras que os raios de sol puderam, finalmente, atravessá-las. Nesse dia, podemos afirmá-lo com propriedade, o mundo parou.

Pararam as fábricas, pararam as lojas, pararam as escolas, pararam os pais com plena colher em riste quase à beira da boca dos filhos, pararam os cachorros, os gatos vadios, pararam as árvores agitadas, pararam as vagas bravas do mar, pararam os carros na estrada, pararam os comboios nas linhas. E mesmo onde era noite, júpiter apareceu nos céus como não fazia há cinquenta anos, por entre o intervalo de nuvens persistentes. E até aí, a noite parou também.


A empresa de impermeáveis, oleados e guarda-chuvas, que era a mesma que desenvolvera as tecnologias submergíveis para todo o tipo de máquinas e instrumentos electrónicos ou mecânicos, essa quase faliu. Mas cedo todos percebemos que a empresa deve servir as gentes e não servir-se das gentes, ainda mais quando dela não depende a meteorologia.


Hoje, aos primeiros raios da alvorada, as pessoas estavam todas despidas.

pensamento

a poesia não mora nos becos dos dicionários e prontuários, onde, última e infelizmente, a temos enfiado. mora-nos no sangue e na alma, onde involuntária e desumanamente, a temos calado.