Tuesday, January 31, 2006

a terra



Naquele dia tinha chovido.

O ar ainda estava cheio da luminosidade de Inverno, como se todo ele fosse espelhando os raios de sol quente que contrastavam com o cenário molhado.

Naquele parque, longe de minha casa, dava voltas ao que ainda guardava da noite anterior.

Tentava vislumbrar entre as memórias enevoadas, o código perdido dessa noite que me tinha dado um nó, não na garganta, mas no pensamento.

O parque olhava-me enquanto o contemplava.

De alguma forma, eu era-lhe indiferente, como lhe era o meu olhar pousado num dos seus lagos. De alguma forma, ele só queria abraçar-me.

No fundo do lago, descansavam folhas dos últimos dias do Outono, de um castanho já morto. E era essa morte que dava vida às águas onde não nadava um único peixe. De fora, com o sol na cara, era forçado a semicerrar os olhos. O mais importante para mim já não era a noite anterior. Ali… eu não respirava. Estava antes a ser respirado. Nesse mesmo instante, colapso. E, desaparecido, nunca me tinha sentido mais vivo. E foi o cheiro da terra molhada. O cheiro mais puro, decerto o cheiro do primeiro dia, porque é o cheiro do mundo imaculado…

Olhei a relva, um verde húmido escondia a terra mas o cheiro não. Senti aquelas gotas nas minhas mãos. Geladas, desceram até à terra, abaixo dos fios verdes de relva. A terra tocou-me.

Thursday, January 26, 2006

lisboa escondida

Muros e casas erguidas num desnível de colinas
Cidade escura de almas à deriva pelas artérias escondidas
Em ti escondem-se sorrisos
Nas janelas perdidas.

Encerras a amargura do olhar
De tantos quantos desde a manhã
Ficaram para te amar.

Tens a certeza de abraçar
Uma pobreza tão vasta como o mar
E no teu rio passeiam nuvens
Dos homens que viste passar.

Podes esconder-te no cinzento das tuas ruas
No envidraçado céu que te cobre
Mas em ti vibram cantos de guitarras
E sobem mares de saudade.

Lisboa, ensina-me a morte e a vida
Que desprezei desde aquele instante em que te vi
Ensina-me as flores que te habitam as pedras da calçada
Ensina-me o brilho dos olhos chorosos das tuas mulheres
E o sabor do teu vento no rosto da minha.
Ensina-me a percorrer-te como se fosse o teu sangue,
Eu e as tuas gentes.

Tuesday, January 24, 2006

de pé...

mesmo quando o ventos nos são contrários,
olharemos firmes o futuro que queremos construir
contra correntes e grilhões reaccionários
levantaremos a voz de tantos quantos souberam resistir

como um mar, somos constantes na luta
não vergaremos nem braços nem mentes
não haverá força mais forte que a esperança
de construir um mundo novo com nossas gentes

e se um dia alguém vender sua conduta,
outros mil darão rumo e norte à mudança
de um mundo corrupto, doente e indigente
a um mundo horizontal sem filhos da puta

Wednesday, January 18, 2006

osrevinu

encontrei um dia a espinha do cosmos
mas perdi-a quando me distraí.

Thursday, January 12, 2006

anti-epicuro

sei que morro enquanto vivo,
mas deixem-me viver enquanto morro.

por isso quero esse vinho
num sorvo
por isso quero esse teu lábio
no meu corpo
por isso quero o fogo
no horizonte
por isso quero a música
no meu vento
a essência das mulheres
no meu leito
por isso quero o meu sangue
cada vez mais vermelho,
mesmo que esteja rarefeito.
por isso hei-de caminhar
pelos mares à minha frente
em passo imperfeito

e ainda que morra amanhã
terei vencido a morte no dia em que nasci.

Thursday, January 05, 2006

não morre mas sofre

não te valem mais mistérios, poesia.
a vida das gentes está nua,
e a nossa alegria é uma sombra que vagueia,
p'las mortes dos outros e nunca p'la tua.

Tuesday, January 03, 2006

variações do neo-classicismo decassilábico

traz-me uma flor acesa nos teus dedos
de chamas ascendendo sobre mim,
e contigo as nuvens trazem segredos
negro veludo canela alecrim.

(...)

de um lado sou, do outro não

como eu fora uma ponte para outro lado
passam laminadas as águas beijando as margens
do rio que me corta a alma, afiado

sou uma ponte de mim
entre o lado que diz não
e o lado que diz sim,

passeia entre a minha própria neblina
e a altura continuará a ser incógnita
por não sabermos a que distância estamos de deus,
por quanto me estendo, não saberei,
pois moram longe os destinos dos homens.
homem eu?
de que lado de mim descansam esses ossos
que me puxam para a infinita mortalidade...?