Sunday, July 30, 2006

beijo sem lábios

assustador,
disseste-me de lábios tremidos.
assustador. . .
beijos assim não são esquecidos.

assustador agora é o beijo
constante
penetrante
que se me ficou desenhado sem lábios,
de palavras caídas:
fossem flores num pátio,
num jardim. . . assim se deitaram sobre mim.

Thursday, July 20, 2006

homem levantado

se há noites que não se vão
há fogos que não se apagam.
e haja corpos que resistam
que ninguém nunca luta em vão.

se há correntes que teimam,
combatem forjas acesas na calada.
e nunca desistas das bandeiras que ondulam,
mulher no campo forjada.

se te escarram cicatrizes pela pele,
encontram teu rosto levantado,
homem erguido, tudo é possível!
a teu lado caminha o povo libertado.

raíz da terra

verde. era assim quase tudo para onde olhássemos naquela pequena terra desenhada nos confins do continente, onde ele se encontrava, a pique, com o mar que reflectia sempre o sol nascente abrindo as vagas à luz do dia. as casas eram rentes, brancas entre as folhas largas das árvores antigas. e muitas, as mais pequenas, plantavam-se entre cajueiros do tamanho de quintais que escondiam as paredes tímidas das cabanas.

as portas, intervalos nas muradas, tinham sempre os portões abertos e muitas vezes crianças descalças seguravam pequenos saguis enquanto lançavam as suas pipas ao vento da tarde. assim tinham os deuses deixado aquela terra, a si própria e à vontade das árvores que a abraçavam. por todo o lado se pousavam pacientes aves, coloridas, atentas. muitas falavam e ainda hoje contavam estórias de tempos mais antigos que a abertura do mar e o reflexo do sol.

era uma cidade escondida de si própria, perdida entre as raízes do tempo, como se ali ainda habitassem povos arcaicos. de facto, as madrugadas ainda traziam cânticos que ressoavam do interior da terra, quentes e poderosos, pesados do tempo que passava.

estranhamente, não chovia, embora as humidades fossem tantas que amiúde os corpos não precisavam suar.

na cabana de cima, de onde soavam tambores ao anoitecer e crepitavam chamas dançantes em movimentos de mulher, vivia a família mais velha da terra. a mais velha, senhora de avançadas eras carregadas no traje e nos olhos, seria das poucas que ainda hoje lembrava a língua das serpentes sibilantes, antigas e primordiais filhas dos deuses desertores.

ali os dias passavam sem que os contassem, como as horas sem registo em nenhum ponteiro. mesmo a lua passava renitente, esperando poder ser a referência de um calendário por inventar. por isso, nunca saberemos em que dia a vida se desprendeu da raiz da cabana do monte. nunca nos saberão dizer a que hora, mês ou ano, o manto da morte pendeu donde se sustinha, caindo sobre os tambores daquela casa.

saberemos apenas que no raiar do sol seguinte, tão abraçado pelo mar quanto antes, mas sem vaga aberta à sua passagem, a terra acordou diferente. Nessa madrugada soaram cânticos diferentes, fatais. ao anoitecer, o sol, deixou, teimoso, ficarem deitados alguns raios seus sobre as plantas, alaranjando o verde infinito e o céu que resistia à escuridão. nesse ocaso arrastado, não troaram tambores. com a noite, choveu.

Tuesday, July 18, 2006

resistir

vibrem os meus átomos
com o cair da noite escura,
gritem as horas pelas quais passo,
sem lhes tocar,
fraquejem as traves do universo,
com o olhar de rapina do negro infinito,
que em cada partícula de ser, resisto.
inspiro,
há uma praia em que a areia
te desenha, incontornavelmente,
a ti.

expiro,
e continuo num mar que murmura,
a cada vaga,
um nome antigo de mulher.

e há um toque incandescente,
que desce do teu olhar,
caindo lento, líquido,
como água cai de uma nascente.

Sunday, July 16, 2006

fim de uma noite de verão

Gotas salubres em palavras fazem nascer mais uma madrugada. Tento pensar em levantar-me para a acompanhar, mas, o meu processo é inverso, ou, pelo menos o é a tentativa, já que na fresta da janela o mundo gira ao contrário da vontade.
Nem eu estou, e tu longe... demasiado longe e nunca o suficiente para que a memória me leve o teu aroma, ou que mesmo a olhos fechados se deixe de desenhar a tua feição, é linda! Contemplo...
Acordo novamente e a lua faz companhia ao sol, dois amantes no anseio de se tocar, como te percebo lua e compreendo o teu reflexo. O cansaço apodera-se e eu, eu tento,não consigo, já seduzido deixo-me seduzir pelo sono, no fundo só desejava que aqui estivesses.

Friday, July 07, 2006

sob os teus dedos

há dois milimetros de ar

in
fi
ni
tos

e logo a minha pele.

sob os teus dedos há uma dança
um remoinho
um assobio

sob os teus dedos
há dois centímetros
de calor
e,
logo,
a minha pele.

Tuesday, July 04, 2006

Monday, July 03, 2006

conto do sul

Há muito tempo que não vinha à terra onde nascera e conhecera o primeiro olhar de mulher.

O próprio cheiro lhe era agora desconhecido e o éter do ar penetrava-lhe os pulmões como estiletes ensanguentados, mas cravados de saudade. Mesmo que lhe pedissem, não saberia dizer porque partira anos atrás quando os primeiros pelos lhe irromperam a pele da face. Mais matizada a sua tez, um escuro suado, de rosto áspero tanto quanto o olhar negro, voltou.

E a cada passo, uma luz líquida ilumina cada canto que olha. Uma escuridão púrpura de veludo cobre um passado que ali não viveu. Não está muito diferente a terra. Claro que o carvalho ao fundo da rua desapareceu para dar lugar a uma festiva fonte em granito importado, mas os carvalhos hoje em dia já não davam abrigo a ninguém, porque os velhos já não gostam da rua.

As casas ali se plantavam estóicas, registando na cal as memórias, como películas de filmes que ali se guardavam apenas para se mostrarem a quem soubesse falar com as suas paredes. O que era uma arte tão perdida, que hoje poucos poderiam desvendar tão ricos registos.

Calor branco que amarelava o ar, as árvores e a pele suada dos homens, deixando imaculada a alvura das mulheres vestidas de sedas longínquas. Era assim por ali, desde que o sol havia decidido deixar de se pôr naquela terra porque se apaixonara pelas flores das cerejeiras tão diferentes que em cada uma dançavam as cores do fogo, daquele fogo escuro de fogueira à beira da praia pela noite cerrada.

Vestia um linho leve e branco no tronco, de linho negro cobria as pernas, por onde se lhe assomavam os pés sujos em duas sandálias de terras exóticas que ficavam do outro lado dos oceanos. O saco que trazia pendurado nas costas pesava apenas duas folhas de papel amarelado. As mesmas que dentro dele repousavam à espera de novas escrituras.

Ali passou, pela avenida central onde no chão ainda rebolavam as mesmas pedras. Olhou a vitrina do barbeiro onde se liam hoje os mesmos preços de antes e pensou que aquela fora a única casa onde não tinha usufruído de um serviço enquanto ali viveu. Não seria pois tarde.

Após pagar, rasgou no peito esquerdo um golpe com a navalha que comprou ali mesmo. O sangue falava a língua da saudade e da beleza guardada no coração.

Pela mesma avenida, de peito em sangue, cumpriu o que ali o teria levado.
Depois voltou atrás e partiu. Bastou-lhe o olhar verde da cigana fulgurante com quem havia subido a mais alta das cerejeiras num dia distante. Foi nesse dia que as flores se tingiram de fogo e chamas e o sol desde esse dia as contempla, derramando ouro sobre a terra.

Caminhando rumo ao longe, puxou das folhas que trazia. Nelas se inscreviam os nomes das cidades, das vilas e aldeias vagabundas por onde pulava. Finalmente, acrescentou o nome da sua terra às folhas da sua vida.