Thursday, September 28, 2006

criação

o fumo do meu cigarro enrolava no ar os meus pensamentos. depois de ler no jornal de café barulhento um artigo sobre a origem dos seres, revoltou-me o regresso retumbante do idealismo. o mundo desfaz-se às mãos balofas daqueles que o dominam. o raciocínio do homem é a nossa única chave para abrir a obscuridade. o próprio planeta nos lamenta.

o café passou-me amargo, mas quase despercebido. o novo travo do cigarro incandescente encheu-me os pulmões de raiva. o idealismo. eterno inimigo da humanidade reforça a sua cruzada de dominação do espírito. a criação por oposição à racionalidade.

enquanto passo os olhos de relance incontrolável pela rapariga que se sentou na mesa do lado, aprofundo. a subjectividade das emoções é o sustento da miséria. nós somos o nosso próprio inimigo. no vidro da mesa em que me sento, vejo o meu reflexo contra o tecto. o vidro, no entanto, não sou eu.

agarro a água e bebo-a para tirar o gosto cansado do café. explico o artigo do jornal a mim próprio e entendo o equilíbrio delicado entre ideia e matéria. explico a vida com um facto inexplicável. a criação torna-se clara. o idealismo é a base contrária da definição. acaba-se-me o cigarro. a raiva passa-me dos pulmões para todo o corpo sob a forma de um pensamento.

Monday, September 25, 2006

sangue

no dia em que corrermos para nós próprios,
as chamas da força queimarão as correntes

que nos prendem,

e nosso sangue, ígneo,
não se derramará mais.

trevas

a praça tresandava a peixe moído e o cheiro adocicado das folhas de couves a apodrecer enjoava. ladeada por pequenas casas, a praça ali descansava, redonda. duas ruas, mais uma viela para ali confluíam. era o centro da cidade. construções de pedra unida por uma pobre argamassa castanha davam à praça o ar triste da idade em que vivíamos. idade negra, não como a noite, mas como um dia passado em clausura.

ontem tinham ali estado famílias de comerciantes, vindos de fora, de longe e de perto. uns com peixe. outros apregoando legumes. carne não. chegavam em carros e mulas, com o cuidado de trazer tudo bem acondicionado, não fosse cair um nabo ou um precioso arenque salgado.

hoje era o sanatório das doenças da alma e do corpo. a viela que dava para um pequeno largo, era o canal mais habitado. no largo, sob um arco de uma ponte, uma árvore sem vida enchia o espaço, contrastando com as candeias acesas que iluminavam as placas de madeira, anunciando estalagens e casas de pernoitar. nas janelas assomavam-se mulheres tristes. a rua grande, ao estilo de avenida ia direita às portas da cidade, viradas a nascente para que ninguém se esquecesse de acordar. a outra rua, mais delgada, mas decorada de flores púrpuras e brancas pendendo das varandas e dos candeeiros levava aqueles que quisessem à casa de deus.

foi dessa rua que saiu pairando o bispo obeso. passava censurando a própria existência do homem, de nariz feio, erguido acima dos cheiros mundanos do peixe e das alfaces castanhas. acima, principalmente do cheiro a humanidade perdida pelas ruas escuras. ele era um ostensivo animal do clero. eu tinha um papel naquele dia e não seria o último.

da janela do meu quarto por uma noite, olhei com calma a besta que passeava os anéis do poder, carregando o deus da alimentação anafada no ventre. sorvi o último trago da aguardente que uma mulher me tinha deixado sobre a mobília, como um presente. desci a escada num salto. olhei de novo. os vagabundos mendigavam bênçãos ou palavras divinas, na esperança de que fossem feitas de prata ou cobre. outros, como cães acossados, remexiam flagrantemente os restos espalhados no chão, aguardando a misericórdia tão propagandeada nos cartazes à porta da igreja. o bispo que ali passava não era um homem, era o poder.

tirei o pequeno estilete do cinto. corri. passei como um gato, lesto e silencioso, a minha garra de metal junto ao pescoço do homem que falava por deus, contornando um séquito de inferiores padres com a dignidade de um bom ladrão.

enquanto o sangue jorrava, misturado agora com as escamas e as tripas do peixe de ontem, abraçando os legumes liquefeitos, os trajes encardiam-se. o bispo já não flutuava acima do mundo. ninguém viu a sua alma voar, nem nenhuma aura se fez descobrir. apenas sangue e imundície. de repente, morrera o poder. foi pilhado o corpo, roupas, bolsas, cordões, sandálias, anéis e outras jóias, como a qualquer outro teriam sido. entre os padres que rodeavam agora o cadáver, não existia preocupação solidária. nenhum protegeu o corpo, e um chegou mesmo, disfarçadamente, a guardar uma pequena bolsa. entre eles, cruzavam-se olhares e o pensamento, sabiam-no bem, era igual em cada um. pode ser que me ordenem a mim.

cleptomania

como vieste,

homem,

a roubar o que é teu?

Friday, September 22, 2006

germinar na morte

caminhávamos de mãos dadas, os braços junto aos pulsos envolviam-se em trança. em nosso redor estendiam-se os campos vermelhos do sangue da guerra que ainda se sentia.
os homens e muitas mulheres foram ali trespassados pelas suas próprias lanças, derramando entranhas aos corvos do dia seguinte.

ainda não tinham verdejado novos rebentos no campo. nem a mandrágora aparecia ainda rente ao chão dos enforcados. mas nós… nós já caminhávamos de mãos dadas.

Wednesday, September 20, 2006

queda ou voo

era o fim de uma estação e as árvores despiam-se lentamente antecipando a neve. pelas noites, a lua encontrava um espelho da sua palidez no manto branco de flores abraçadas ao chão já húmido das lágrimas do tempo. todavia, o dia pintava feixes entre as ramagens, numa luminosidade de celestial alvura. mais tarde, virá a neve efémera dos invernos, irmã de tantas flores quantas as que se desprendem da vida.

e quando por ali caminho, neste fim de estação, meus lábios sorvem os sabores do vento frio que já sopra. às vezes, os sopros do norte trazem-me amêndoas doces.

hoje, particularmente hoje, detive-me no meio do trilho ladeado pelas árvores sedutoras dos sentidos. e, ali, de braços caídos ao longo do corpo, cerrei os lábios e os olhos e senti a minha pele ser beijada. a minha face. os meus ombros. pela tez escura exposta, senti as asas da tranquilidade. um aroma de cerejas do verão ainda me visitou juntamente com a neblina do mar pela manhã.

quando os meus olhos se abriram, como uma flecha que dispara sozinha, percebi que as flores me tinham tomado e, por momentos eu fui uma delas. quando se me abriram os olhos, a imagem das pétalas, agora caídas, impossibilitadas de voltar ao seu ramo, à proximidade das suas folhas, encheu-me. vi a vida ali presa ao chão, irreversível tanto quanto passageira. e eu fui uma dessas pétalas desprendidas, passageiro de uma vida, mas numa viagem durante a qual fui beijado pela queda das flores.

Saturday, September 16, 2006

mar alto

sonhei que estava

nesse cargueiro,
contigo.

e éramos felizes.

Thursday, September 14, 2006

fim

e de repente ser fria
distante.
nuns minutos passar
de amante a nada
de amiga a nada
de mulher a nada.

o calor dos dias acabou
o aperto da mão no corpo acabou
a dança silenciosa no negro acabou
a vontade no ventre
o sorriso nos olhos
o rodopio de vento
entre a tua pele e a minha pele
acabou.

não tenho mais coragem
nem amor
nem desejo
nem riqueza em mim.

abandonar os homens da minha vida
e ir
só com esta desesperança imensa.

Monday, September 11, 2006

luz

os raios de luz misturavam-se em rodopio com o fumo do cigarro que viajava perto da janela do estúdio. eram aliás as últimas persistências da luz daquele dia e, por cima das mesas cheias de papel, o ar fazia-se escuro. pelo estúdio não vibrava qualquer som e os passos dela ouviram-se na perfeição. ele estranhou a visita. porém virou a cadeira para entrada à espera da silhueta divina recortada contra as luzes da escadaria que pendia até ao nível da rua. o que iria na rua naquele fim de tarde?

ela assomou-se da porta. deu três passos. determinados. a roupa leve adivinhava o corpo mais amado. as palavras sairam-lhe claras, vou embora. os pulmões dele contrairam-se. o coração sobressaltou-se. mas os lábios ficaram cerrados. o último cigarro ainda a viu virar-se sobre os pés, com um jeito calmo da anca.

a noite caiu e a janela abriu-se mais. felizmente havia estrelas.

deitado de costas no chão, o céu pontilhado de luz abraçava-o. olhava as estrelas sabendo que nelas via o passado.