Friday, March 28, 2008

pedras contra canhões

a ofensiva dirigida erguida edificada
não é mais alta que a muralha
dos nossos corpos levantados numa só alma.

a lama negra em que rastejam
os canhões que nos apontam
os silvos de medos com que nos matam
não são mais robustos que a couraça resistente dos que gritam.

as sereias lancinantes da exploração
o massacre moral da religião
o arame farpado social da comunicação
não cobrem os olhos abertos dos que lutam.

a vigilância, a atenção, os sentidos alerta
não deixarão firme a torre da violência
e quebrarão, como ondas quebram rochas,
a vossa malha que tanto aperta.

vem, sai à rua, com as pedras na mão,
não há revestimento que salve aquele canhão!

- sem título -

e, por isso,
quando amanhecer
e eu for também o substrato dos outros,
e os outros o meio por que respiro,
seremos, até ao anoitecer,
da poesia fruto puro.

segundo todorov (poética)

"a literatura é a forma de arte em que a substância, a linguagem e o meio são um só."



a transcrição não é exacta, mas reflecte a tese de Todorov. e esta é das poucas teses que, por si só, são além de brilhantes, "poéticas".

Tuesday, March 25, 2008

nebulosa

dentro de mim
crescem estrelas,
e sinto-me ascender,
acender, em chamas,
em luz escondida
que me ilumina
em sorrisos e brilhos.
beijar-te, mesmo longe,
inteiramente, aprender-te
lentamente, como vejo uma flor
florescer. e o teu olhar,
sublime, envolve-me num sol só meu.

Thursday, March 13, 2008

(ab)surdo

mais um dia passava, frenético mas lentamente. lá fora os ruídos da rua, dos carros apressados, das palavras caóticas pela chuva metódica não chegavam aos meus ouvidos. o meu ruído era demasiado intenso. sobre ele nada poderia passar. as palavras da mulher que me limpou a secretária, as palavras do homem gordo que me dava ordens sentado, as palavras do colega que gabava as notas do filho, todas me passavam inexoravelmente sem provocar nenhuma vibração. todas se misturavam com o meu ruído, as minhas ilusões.

mais um dia, e o fumo de som que me invadia, tomava novamente conta de mim. pior, tomava mais e mais da minha alma. algo como o ranger constante de uma porta antiga. era esse o som da minha ilusão.

mas do ruído do meu próprio ser crescia a impossibilidade de ultrapassar as minhas entranhas. tudo à volta é o meu som. na secretária, pousados os lápis cansados de riscar e rabiscar a distracção. lá fora as árvores despidas são quem me reflecte. os meus únicos espelhos.

(...)

hoje à noite escrevo a nota em que me repouso. uma carta para ninguém, mas finalmente silenciosa.

"matei-me porque o silêncio é o meu único repouso. matei-me porque não consigo viver ao som da campainha que toca o som da minha vida."

ali mesmo no funeral, o colega do filho com boas notas diz para o homem do lado que não compreende, que nunca ouvira tal campainha mesmo trabalhando tão perto de mim. eu estranho porque aquele ranger soava tão alto - afinal o meu colega era surdo.