Wednesday, December 28, 2005

desenhos feitos no ar a carvão

são os contornos das palavras
que me habitam, difusos
aí nascem as aves de mim,
aí se plantam os meus rios.

são desenhos feitos no ar a carvão
(poemas escritos no meu corpo com as tintas da minha alma)
são um peso novo, desconhecido
são um mapa do que sou, sem mostrar onde estou,
são a minha vida numa gota de chuva por cair.

Sunday, December 25, 2005

noite

há dias, há instantes, momentos,
tempos em que queremos apenas
ouvir cantar o sopro dos ventos.

Thursday, December 22, 2005

Inércia


Desvio o olhar do relógio. Na verdade, o tempo parou esta manhã.
Quando foste embora. Quando me deixaste entregue a mim mesma. Dizem que na ausência tudo esmorece, e tu teimas em provar-me o contrário, em torturar-me com golpes sanguinários de saudade e desejo. Paradoxalmente, esta seria a fase que em ti encontraria diferenças incontornáveis, uma qualquer justificação para o meu medo e que te faria partir sem deixar rasto; no entanto, quantas mais são as noites ao teu lado, mais gosto de ti, mais povoas o meu pensamento.
És um homem sensível, gosto da tua fragilidade que é também a minha. Gosto de poder mostrar-me sem rodeios, ser eu e não alguém de quem gostarias mais...e ainda assim, saber que não te importas. Veres-me como sou e abraçares-me...
Volto a espreitar os ponteiros do relógio. Julgo que se moveram, à rebelia da minha inércia. Este tempo é profícuo em coragem, porém estaticamente tentador. E não pode ser diferente, é tempo de Amor!

Tuesday, December 20, 2005

há rumos sem faróis

Alcança-me o corpo por favor
Desenha-me em chamas junto às constelações
Beija-me o peito da alma ao som do piano
Fecha-me os olhos das preocupações

Sopra-me vida ao ouvido
Arrepia-me como um sismo só meu
Acende-me com um só suspiro
Navega-me, o meu mar é teu

Alcança-me o copo cheio de ti
Desenha-me na areia solta
Beija-me os lábios com frutos
Fecha-me em ti, aberto sorriso

Sopra-me um vento quente, em descanso
Arrepia-me subindo vertical o corpo deitado
Acende-me uma estrela no tecto branco
Navega-me, não preciso farol aceso nem apagado

Friday, December 16, 2005

I, II, III... revolução (nasce, olha, cresce, revolta-te)

I

no dia em que nasceste
não se acenderam chamas no céu,
não se desenharam por aí
sorrisos em cada esquina,
no dia em que nasceste
as montanhas não rugiram
não se riscaram cores celestes
nem as pétalas abriram
em tons diferentes,
no dia em que nasceste
não se levantaram mãos
não caíram lágrimas de alegria
não nos olhámos como irmãos
era apenas mais um dia
no dia em que nasceste
a história não escreveu mais livros
ninguém dançou em rodas de mãos dadas
nem decorou praças nem ruas
nesse dia não se abriram por ti garrafas de vinho

II

os olhos que mais tarde abriste
não viram mais que o que existia
não viram mundos dos livros
a vida era a verdade
e a verdade não tinha chamas no céu,
sorrisos, montanhas floridas,
não tinha arcos pintados,
nem flores de diferentes cores,
não havia mãos livres levantadas, nem lágrimas de alegria,
irmãos, só nascidos do ventre da mesma mãe,
não se dançavam rodas alegres,
nem as ruas tinham a cor dos campos em flor,
o vinho só na cave e mesa do teu patrão
a história era apenas o processo do teu próprio desaparecimento.
a verdade era a tua extinção.

III

desenganem-se os donos da resignação
os balofos generais da exploração
desiludam-se os necrófagos,
parasitas e outros mestres da ilusão.
que a tua vida não estava escrita
nas páginas da sua ambição,
nem podiam conter-te as forças
nem as raízes da tua libertação
não podiam cortar-te o sopro
de vida colectiva em tua respiração.

IV

eras apenas tu,
herói das memórias por criar
novo, em todo o teu viver,
criar agora é tarefa tua,
deixaste deus no seu lugar.
e o vinho, e as uvas, e as sementes das uvas
e a terra onde plantas as sementes, e a cave e a mesa,
e as ruas alegres, as danças ao luar,
as lágrimas felizes, as mãos levantadas, livres, cerradas,
as flores, os céus riscados, as estrelas,
são agora o papel onde escreves a tua história
com tintas de vitória.
e irmãos, todos, todos do ventre de uma terra libertada
nossa mãe.

Friday, December 09, 2005

capricho

Subia as escadas em passos lentos. Sob as pontas dos meus pés sentia a cadência da escadaria de pedra gasta. Era ali que fazia a espera muitas vezes, a espera da noite. Porque a noite é uma coisa, o entardecer é outra. E o pior é sempre aquele momento entre o fim do dia e o princípio da noite, a que alguns teimam em chamar hora de jantar, esse hiato de vida. É esse hiato que me deixa pendurado sobre mim próprio, muitas vezes chutando os minutos com os pensamentos. Subia as escadas em passadas lentas, deixando correr esse tempo perdido para que não permaneça. A ascensão compassada já me trazia o suor, aquele suor trémulo de quem sabe que vai entrar no bar. Mais especificamente, vai chegar-se ao balcão da Capricho Setubalense, centenária sociedade musical, colectividade de esperanças e desarrumos, de festas e de tristes jogos de cartas.
É com esse suor que tanto gela como aquece o céu da boca que subo as escadas, passando as portadas de pedra, frias, por isso mesmo. É com o sabor prévio da amêndoa amarga que lhe imagino já as ondas de licor escorrendo lentamente pelas paredes do pequenos copo, minha ampulheta nos hiatos de tempo. Já senti o primeiro trago e ainda não cheguei lá acima. As paredes passam com as mãos no corrimão de pedra picada que acompanha a escadaria. É exactamente no momento em que devo avistar o chão por debaixo dos lustres antigos, que a vejo. Ela tinha-me dito que passaria por ali um destes dias, não podia adivinhar que seria aquele, nem saberia que poderia ser exactamente à hora que não é dia nem noite. Mas foi exactamente à hora em que nada acontece. A hora da espera que os outros saiam para beber as alegres canecas nocturnas, a hora suspensa.
A hora em que a música ainda é a que nos cruza as visões, sem ter necessariamente um som que a sustente.
Não falou, não falei. Um abraço desenhou-se no salão de entrada, sobre o soalho de madeira e os seus ruídos. Um abraço que estava preso nos corpos, soltava-se por eles próprios e demorava-se enquanto nasciam beijos que subiam à boca. Quem visse, poderia dizer que se ia dançar. Mas era uma dança que ninguém podia ver. Secreta, onde o mais forte era exactamente o que não se via. Era a raiz que desejei ter pelo chão até à terra, era a força com que queria abraçar e sentir-me abraçado, era o beijo solto que em breve se despegaria dos meus lábios. Mais escadas mesmo à nossa frente, à esquerda o bar continuava a acenar cheiros e cores. As escadas impuseram-se. O seu tom escuro de madeira velha? O ranger que sabíamos vir a ouvir? Enlançados pelos braços, dois passos chegaram-nos à escadaria superior. Olhares trocados. Os olhos dela eram espelhos glaciares onde se reflectia nada mais nada menos que a minha alma em desejo. Cada degrau era uma batida forte, um anúncio do que estava escondido e ia ser descoberto. Cada degrau era uma força contra o peito, era uma mão perdida que lhe tocava o cotovelo. A escada bifurca-se, intuitivamente sobe-se pela esquerda, ali já ninguém nos vê. A porta que aparece é de madeira, da cor das escadas. Os ruídos não calam o beijo, a mão não deixa de subir acima do cotovelo desenhando-lhe o corpo com a ponta dos dedos. Há um corpo perfeito que ela habita. Não foi mais preciso abrir os olhos para sentir as pétalas que caíram sobre nós. O último beijo foi no traço sublime que une o seio esquerdo ao peito pelo lado de fora do corpo, descoberto pelo seu braço levantado. Sair? Perguntei-lhe. Não… claro está.
Li-a mais tarde numa carta: “amanhã na murada de Alcochete junto ao Tejo, beijo”.
Ela não apareceu. Fui sentar-me na esplanada, com café.

Monday, December 05, 2005

anoitecer de dezembro


Sobre o rio mirava as almas dos meus pensamentos. Alguns deles não conseguia decifrar, passavam mais depressa que as nuvens. Sentado à beira da terra, desenhava num papel tudo quanto ainda era minimamente claro depois de tanto daquele vinho licoroso.
De facto, pelas veias rarefeitas corriam longos travos de mel. Mel.
Sobre o rio mirava as almas dos meus pensamentos. Mesmo daqueles que nunca tinha tido, sentia-lhes o sangue ferveroso, como o meu. Anunciavam-se novidades depois daqueles minutos ali sentado. O céu mudava-se como eu. Como eu escurecia-se, carregava-se, franzia-se, em breve começaria a chorar.
Sob o céu anoitecido caminhavam por ali outros tão viajantes como eu. Nem a chuva nos mandou embora. Colectivamente fomos como flores goteadas de orvalho, naturalmente, não fugimos, serenos. Sobre nós caíam as gotas do rio que se levantara.

danças comigo?

Danças comigo? Perguntou ele, pequeno, desaparecido. O som era-lhe estranho, o mundo parou e a visão girou em espiral a seu torno. Um fantasma via-se a si próprio, afastando-se, ganhando a necessária distância para tudo aquilo lhe parecer suficientemente real, como um filme de cinema. Parado o tempo, o som continuava como uma caixa de música a quem tinham dado corda a mais. A bailarina dançava freneticamente com todo o corpo de madeira ondulando ao sabor de baixos descontrolados que lembravam o bater do seu coração. Como os impulsos viajantes da música perdida entre aquelas paredes, o ritmo do seu pulso era já um rio de ansiedades, acelerado, pouco respirado. O copo na mão já pedia novo sorvo, o sabor do último trago do rum assustou-o. E o tempo não passava, detinha-se em cada passo dado da parede para o centro, por debaixo dos feixes clarividentes do retombante olhar para o lado que se adivinhava. As mãos perdidas, além de a esquerda segurar o copo, encosta-se a direita ao corpo, abandonada, mas tensa. Em todo aquele tempo pensou em abraçar-lhe a anca, segurar a alma, agarrar o pescoço, acalmar o coração, desaparecer para não se ver, ir de encontro às dela, passar-se no seu peito… mas tudo isso era demasiadamente extemporâneo: o adequado era resignar-se a uma existência tão vaga como a de segurar o cigarro esquecido mas já quase esgotado de nervos.
Os olhos dele perderam-se pelos lábios dela, denunciando irreversivelmente que dentro dele vivia uma chama. Tocaram mais altos os sons daquela noite, como que se os anjos empenhados e atentos, controlassem o volume das angústias. A intermitência das luzes dava agora a cada movimento uma dimensão próxima de uma sequência de fotograma sim, fotograma não. Entre a ausência total e a próxima visão pálida, os olhos dela viraram-se. O bar chamava-a. Não chegou a saber o nome dela.

Saturday, December 03, 2005

Perenidade de um dia...


Sentada, as paredes brancas resvalam sob a forma de silêncio. Observo o movimento da cidade: pessoas correndo de um lado para o outro, ao ritmo do baloiçar da minha perna esquerda. Passam por mim, atropelando-me com a sua indiferença. Analiso a minha poltrona de tamanho infinito, composta por pedras, alcatrão e beatas de cigarro que desenham puzzles de vidas monótonas...
O movimento que de pendular se torna inerte...Constato que a folha do calendário foi rasgada pela novidade. Os sentidos acordam com essa notícia e procuram diferenças: o cheiro de Dezembro, a cor do Inverno ou a luz dos casacos de lã.
Inspiro toda a atmosfera, acrescentando novos átomos de lassidão aos meus pulmões. Na verdade, a história repete-se, as horas cumprem-se, e só eu, absorvida pela passividade de uma perna esquerda que baloiça mas não avança, deixo-me estar, sentada, sobre a janela da minha vida, adormecida sobre uma vontade que não mais acordará...

Thursday, December 01, 2005

olha a cidade que te olha

Mesmo com a chuva cá fora a cair
o caminho continua,
repetem-se os passos
de um trilho que não tem onde ir
fechado pelas sombras das fachadas
dos edifícios e pelos vultos das almas cinzentas

a cidade olha-nos
solidária com as dúvidas que trazemos
no peito, nos olhos, nas mãos frias
que acendem o cigarro de inverno
com uma existência de fogo

e em nós, crescem as gotas do desassossego,
e olhamos para aqui, para ali, para fora, para dentro
e a coragem de olhar para nós passou
como um fantasma de comboio.

trazes o mar nos olhos (trabalhador do mar)

São escuras as vagas
Não reflectem mais que a lua
E as lágrimas doces
Sobre o sal do mar vivo,

são duras as malhas
das redes da vida,
que às vidas, por vezes
mostram morte.

São longas as noites seguidas
de sol sem luz
mais luz que a luz dos dias em terra,

são profundas as mãos
que tanto prendem como soltam
e vincados os traços dos saberes
que nelas habitam,

são claros os olhos
que já trazem consigo os mares
mesmo pousados em terra,
como que o abraço, o pacto,
fosse de vida, morte, amor,
fosse um laço que feito não se desfaz.