Wednesday, December 17, 2008

natal

eu estava sentado sobre a viga e de mim ao chão ia a altura de uma vertigem. já o frio do inverno me enregelava as mãos sob as luvas de couro, furadas. o trabalho não se dava a feriados, mesmo próximo da quadra do nascimento do menino jesus, que a fome lá em casa não vive de enfeites, nem tampouco de caruma se fazem marmitas para almoçar.

"Sentado sobre a viga, ali estava
Mãos geladas, o frio era de rachar
E eu um homem que trabalhava
Para a fome dos meus poder matar"


frio. estava frio. o vento soprava por mim, passando pelas costas um rubor gelado, mas também não havia tempo para doenças ou espirros, que passar sem trabalhar é luxo a que eu, como os que aqui estão a meu lado, não se podem dar. há que juntar as forças, mesmo quando doem as pernas de manhã, e levantar os braços à construção. o quente da casa, da mulher e dos miúdos, é deixado onde estava logo antes do sol raiar. é assim o inverno. é assim o natal.

"A doença é esquecida
Não há lugar ao conforto do lar
Só a força enraivecida

De mais um dia a trabalhar"

sentado sobre a viga, olhando a grua a parar, percebi que a pausa chegava. finalmente, que se há coisa que não chega rápido é a pausa, muita embora rápida passe, tão rápida como o gole fresco da cerveja que paramos para desfrutar. abro a marmita, chegam perto os colegas. nem deixamos a viga. continuamos acima do olhar dos que passam nas compras. alguém tem de construir as lojas, pois.

"Chega a hora da pausa, bem-vinda
Um gole de cerveja merecido
E um abrir e fechar de olhos que finda
Um almoço pelo frio arrefecido"


abrem-se as caixas, tiram-se as garrafas, enche de pão a boca. o saca-rolhas passa de mão em mão. mesmo a meu lado passa um assobio, quase despercebido no meio do vento frio. um cabo de aço solta-se e dispara bem entre mim e o camarada do lado. salvámo-nos por pouco, não foi a primeira vez. infelizmente a cerveja dele não sobreviveu e vêmo-la precipitar-se entregue à gravidade.

"O vinho aquece, o pão mata
A fome faminta, agravada
E nisto um cabo que se desata
E passa entre mim e meu camarada"

não faz mal, que se arranja um copo que se enche, fraterno, de uma gota de cada um. e os outros quatro deitam uma pinga, ninguém deu pela falta. dir-se-ia "que bonito o espírito do natal", mas nenhum de nós se lembrou do menino jesus.

"Mas de repente fez-se luz
Enchemos o copo que se derramou
Mas do menino Jesus
Nenhum de nós se lembrou"



agradecimento: obrigado ao Miguel Beirão (da balada da liberdade) pelas quadras.

Thursday, December 11, 2008

humanismo

as pequenas estórias, os pequenos momentos ou episódios de amor, são sempre os mais tocantes, também os mais fáceis exercícios de escrita lírica. o amor traz-nos a lágrima, o sorriso, as palavras sensíveis existem em cada um de nós, muito embora alguns não as pronunciem ou escrevam com ligeireza. E lá ligeiro é coisa que o amor não é, nem poderá ser porque o amor, como nos sorri, nos dói. E é-nos, pois, fácil exaltá-lo. Porque todos o queremos e desejamos, o temos, tivemos ou teremos.

Tentemos a impenetrabilidade da alma, a serenidade total da ausência do amor e certamente encontraremos becos escuros dentro de nós que não conhecíamos. E esses becos, inexoravelmente, nos conduzirão ao amor. E o amor é uma chama que arde mesmo apagada, sofrida ou em sofrimento. E é tal o seu poder que uns nascem por ele, outros morrem.

A certa altura Camus escreve, a pretexto da Peste avassaladora, que o amor não existe sem a Humanidade. Por outras palavras, claro está. E tais são que jamais me atreveria querer igualar ou sequer invocar a sua lembrança e estilo de autoria própria. Mas o que é certo é que esse amor é o que Existe, o que permanece. Esse amor é a trave mestra do mundo. Mais difícil escrevê-lo, que as odes dificilmente cantam tal grandeza. E muito menos as minhas, pobres perante o maior centro de gravidade do universo: o humanismo. E hoje, o humanismo é o comunismo.

vida

quero-te debruçada em mim,
e sentir-te, um beijo, um ensejo,
a pele encostada ao meu núcleo mais profundo,
onde moram os meus significados e segredos.

quero-te, como se pudesse mergulhar-te,
aprender-te ao sabor do vento,
soprar-te, puxar-te a mim,
foras a vida que se me foge,
spiritu, espírito nu.

beatas

dizia engelhado que tinha fome,
o velho tossindo, fumando um cigarro
catado do chão, tremendo de frio
na manta apertado, bem embrulhado.

e no meio da rua,
passeando as velhas, nariz levantado
que na igreja haviam deixado
o seu ouro roubado,

vida de merda que a única amiga
é a beata do cigarro, não tarda apagado.

Tuesday, November 18, 2008

o tempo polui

o tempo destrói-me as veias
desvanecem-se-me as dores,
os horrores.

esvaem-se-me os sorrisos
antes abertos, ora perdidos.

não pode gritar mais o meu pulmão
sôfrego, lento,
tão lento quanto bate meu coração.
já não batem as asas do sonho
de ontem à noite.

chegou à cidade o tempo,
ninguém diria como corre irrevogável,
irreversível - e não me iludo
que ele não me espera.

Saturday, November 15, 2008

- sem título -

trago-te em meu peito,
amiga em minh'alma,
qual a lua que nos não deixa
partir ou despedir,
que nos segue serena,
assim és tu, um mar de calma.

Thursday, November 13, 2008

não desanimes

no meio da revolta, fortalece-nos a certeza cada vez mais sólida da justeza da nossa luta.

Wednesday, October 29, 2008

dar

como posso dar-me se me não tenho?

estende as mãos

abre as mãos e estende-as,
quase me tocas o coração,

sei que o sentes, quente
como quentes são tuas mãos.

agarra quem possa cair à tua frente
para o salvares do chão,
não sabes um dia serás quem tropeça
e eu quem te estende a mão.

Friday, October 24, 2008

silêncio

o silêncio mancha-te
de sangue as mãos.

Wednesday, October 15, 2008

humanidade

homo - género que define o homem, por significar à letra "o mesmo" na sua origem latina.
homem - termo que deriva do étimo latim, significa pois "o mesmo", sendo que é o homem que se classifica numa fórmula taxonómica elaborada à sua própria imagem. "Homem" é portanto uma palavra de género simultaneamente masculino e feminino, daí correcta a sua utilização para referir o conjunto da espécie humana.
Humanidade - a propriedade de ser Homem. e não podemos ignorar o papel da linguagem na nossa estrutura racional, daí que o que nos define como "Homem" é sermos "o mesmo". "o mesmo" que se classifica, "o mesmo" que se observa, somos assim o objecto e o sujeito. tudo fazendo parte de um processo em que somos o princípio e o fim. Humanidade é a propriedade de ser "o mesmo".

o que nos define é sermos o centro dos processos, mas mais do que isso, é sermos humanos, "os mesmos" que... "os mesmos", os homens - e este "homem - homo" é paralelamente um "nós", um "vós" e um "eles". é também isso que nos caracteriza e que nos cobre de humanidade, mesmo os que se recusam a acatar o seu lugar entre os homens, sermos definidos em função do "outro". pois "eu" sou o "o mesmo" que "vós".

- sem título -

a lua persiste tanto nos céus escuros
como em sibilar o teu nome
que o nunca esqueça, como não esquece a lua
os meus sonhos.

Monday, October 13, 2008

de joelhos

que reservará a vida
a quem vive com os mortos,
ajoelhado aos lamentos
de marinheiros sem portos?

que sorriso se espera
a quem vive contente
onde o engano reina
e o desespero impera?


ajoelha-te, fiel,
aos pés frios de ouro,
do meu altar condenado,
então voarás aos céus,
eterno, jamais enfermo,
finalmente libertado.

Friday, October 10, 2008

sem título

o meu amor é uma navalha
aguda, de reflexo crepuscular
que me sangra,
e o sangue me falha
vivo, vermelho, a palpitar
e eu, exangue, me exalto.
não há dor que me ascenda tão alto
e quase morto, sorrio.

Wednesday, October 01, 2008

a palavra

a soma de duas palavras resulta num mundo novo, em manobra "divina" de criação. a construção de uma frase pode ser um sonho, um desejo, um sabor, um amor, tanto quanto pode trazer-nos ao terror, à aflição e à agonia. a palavra tem o valor de ser um tijolo vivo, com a qual podemos construir as mais belas estruturas e as mais emocionantes sensações. é por isso que a poética não conhece limites, que a narrativa gera universos e a palavra é, nas mãos dos homens, uma expressão superior do seu próprio Ser. é pela capacidade criativa do homem que a palavra ganha o poder único de transcender e superar o seu próprio criador, porque ela deixa de ser resultado da imaginação e passa a ser a própria imaginação, deixa de ser uma forma de expressão para ser a própria expressão, porque ela deixa de ser resultado de um processo para ser o processo. deixa, enfim, de ser resultado de um sentimento para ser um sentimento.

Thursday, September 25, 2008

para que serve a poesia?

o poema não é verbo transitivo,
nem estado transitório,
não é complemento,
nem suplemento,
é essência e acessório,
núcleo e orbital,
periferia central.

inspiração e expiração,
é céu, inferno, purgatório,
tua mais sagrada oração,
teu canto expiatório
de pecados, indiferenças e virtudes.

é pedra fria, terra molhada
montanha de insuperáveis altitudes
vulcão incandescente,
amor ardente,
lugar comum. comum a toda a gente.

Tuesday, September 16, 2008

chorar porquê?

a árvore intensa relembra-me os dias que vivi ali. hoje, como antes, o calor cai sobre nós como uma explosão que em vez de momentânea se torna constante. na praça, as mesas dos velhos em redor suportam as pedras do dominó, consolo diário desta gente que, mesmo centenária, sabe que em casa não se fazem amigos, nem há tantos sorrisos. além disso, para eles, qualquer hora pode chamá-los à morada final.

voltei aqui sem saber os motivos de ter alguma vez partido. na verdade, não sei os motivos que agora me trazem de volta. só sei que na minha casa, moram apenas os restos de uma vida que já não tenho, uma cadeira de balouço parada no tempo com o esqueleto de minha mãe e uma mão cheia de traças no casaco que vestia o meu pai, ora feito em pó cinzento, desmantelado no sofá.

choraria, fosse eu outro. por ter deixado o tempo comer essas vidas na minha ausência. mas chorar não faria sentido ali, depois de tudo o que vi e de todo o lugar por onde andei.
conheci o inferno, o paraíso, as cidades, as aldeias, o gelo e os trópicos. conheci mulheres de todo o canto. conheci as lágrimas dos órfãos das guerras, conheci as espadas trespassando homens. conheci os horrores. conheci os monstros do mar e das montanhas, as éguas e as suas amazonas, os centauros diabólicos das florestas e os gnomos das grutas escuras do norte.

só não conheci o amor. esse estava ali no pó cinzento de meu pai e no esqueleto da minha mãe. chorar porquê?

escuro

tuas palavras acesas
como pegadas incandescentes
no manto escuro da floresta
apontam, entre folhagens,
o caminho que sigo na noite densa.

Friday, September 12, 2008

trevas II

quando acordei já sentia na boca a sede de sangue. aquele odor férreo que nos cobre a língua, como a fome. afinal de contas era apenas mais um dia de trabalho e por isso tinha deixado os punhais preparados na noite anterior. lavados e afiados numa pedra que carrego para onde vá.

tirei de dentro da sacola uma peça de pão duro e enchi meia taça de vinho acre quase quente. antes de matar, precisava de comer. claro que a pestilência da rua, mesmo de madrugada, penetrava o meu quarto com a mesma intensidade que os primeiros raios oblíquos do sol o faziam. fétido era o ar das manhãs porque carregava a podridão da noite. respirava-se ainda o vómito dos velhos pedintes, o suor dos vagabundos, o calor das mantas sujas nos bordéis e em algumas esquinas, mas pior que tudo isso, respirava-se a sujidade das almas dos homens e das mulheres que vivos, pareciam mortos.

comi o pão, bebi devagar o vinho. apesar dos odores, apraz-me saborear o a taça de alumínio vertendo aquele rubro néctar. cobri a cabeça com o capuz verde escuro sujo, limpei o sangue das luvas e atei ao dorso os punhais afiados. é bom ver que na sua superfície sou mais bonito que em qualquer espelho polido, porque eles toleram as minhas cicatrizes e, mais que isso, compreendem-nas como suas.

com o capuz desci as escadas e já na praça principal caminhei pelo beco até à igreja, esse templo ubíquo e maldito, antro das ratazanas desta época. aí me prostrei perante as paredes nuas de pedra poderosa, em respeito por todos quanto ali procuravam o sossego escondido e para não levantar suspeitas de quem por ali procurava o perdão que não obtinha de si próprio.

aos 28 anos tenho esta capacidade de me fazer passar despercebido, principalmente no escuro. e que melhor lugar que a igreja? subi à torre e daí saltei para o telhado castanho da casa do lado, à distância de uma viela onde mal caberia um cão. deixei em casa a besta, a zarabatana e o veneno. hoje trago apenas os punhais e serão eles a minha mão, ou a mão de deus para quem assim creia.

ainda ouvi a conversa na esquina por baixo de mim: dizia ele que geria a cidade com transparência, que devia fidelidade ao povo, mais que ao reino e que à nobreza. dizia para quem quisesse ouvir. e à sua volta juntava-se a orla mendicante do costume, os coitados, os trastes e os moribundos. curiosamente, já de madrugada o anafado agente real, assim ordenado por vontade do benevolente rei, mostrava a gordura das belas costoletas que acabara de trincar. hábito repelente esse de não limpar a beiça depois da refeição a que se alia sempre o de não lavar as mãos.

pouco tinha eu que me preocupar com política, ou com as conversas do homem ridículo. falta-me receber metade do pagamento por este serviço e só a receberei depois de terminado, o serviço entenda-se. que é o mesmo que dizer, depois de terminado o agente real. e o odor do sangue porco do homem subia até mim no topo do telhado e aguçava-me o olhar, como quando o peregrino falcão foca a presa no solo e se precipita em vôo picado sobre o rato, precipitar-me-ia agora sobre o grande mamífero. um punhal entre as costelas e outro cortando as veias palpitantes do pescoço. jorrando o sangue, novamente minhas luvas se tingiram. e três ou quatro à sua volta se espantaram, outros tantos cobriram o corpo com as mãos procurando riquezas escondidas. ninguém tentou sequer deter-me. mais à frente, depois de dobrada a esquina, tirei o capuz para as costas, deixei o sol mostrar a face insuspeita e guardei novamente os punhais depois de os sacudir. terminado o agente real, agora guardo comigo a prova de sua morte: a sacola dos subornos que ele trazia no bolso.


sem saber porquê, escrevo sobre assassinatos na idade média. este é o segundo assassinato narrado. depois do primeiro.

Sunday, August 31, 2008

vida e morte

é nas mãos do poeta
que o verbo passa a amor,
que o papel se enfeita de cor,

é nas mãos do poeta
que a caneta chora de dor,
que as letras, caligrafadas
batidas, ou pintadas a cor,
se te cravam em chamas
nas costas tatuadas.

poema, vida e morte
se encerram nas veias
dos cadernos que te respiram.

Wednesday, August 06, 2008

de frente contra o muro

conheceram-se há vinte anos depois das aulas. desde aí que seguiram juntos. sempre, de beijo em beijo, de sorriso em sorriso, de filho em filho, de casa em casa, até baterem no muro da rotina.

e só então perceberam que é esse muro que os mantém juntos e que o seu cimento é o mais forte sentimento de amor.

horizonte

sei que nunca te vou perder
porque o horizonte é para sempre
o mar não seca,
os rios não voltam atrás.

trarei teu sangue e tua alma
com ele, em mim, a cada abraço,
a cada passo,

e ao meu lado,
caminhas em frente,
sem olhar para trás.

Monday, August 04, 2008

silhueta

com os dedos no piano, percorro em mim o teu dorso, como se aqui te tivesse. sob as minhas mãos, as teclas a preto e branco, lembram-me o vestido que trazias na única noite em que te vi.

e enquanto o piano me toca, reverberando as minhas cordas, espreito a porta com a esperança que se abra e de lá, por entre o escuro e a fresta de luz amarela, surjas tu.

Wednesday, July 16, 2008

à luz da arte

ao percorrer o corredor da galeira, frio e branco, sentia uma corrente de ar ténue soprando a minha cara. nas paredes, as lâmpadas pequenas apontavam para quadros de cores de verão, onde as chamas dos pincéis dos mestres haviam deixado indeléveis queimaduras. estava sozinho no corredor e as vozes mais próximas atravessavam duas salas até chegar a mim - podia sorrir sozinho e deleitar-me no prazer íntimo de quem se arrepia perante a arte, mesmo sem saber a técnica, o meio, e o nome do pintor.

a luz escorria pelas paredes abaixo detendo-se em cada desenho e pintura, como em adoração de si própria. eu era apenas uma mancha de escuridão, para quem a ausência de luz era efeito do desprezo que lhe merecia. porque ali não era eu sujeito da observação, como o monge que não respira, antes é respirado pelo ar que lhe passa pelas narinas até aos pulmões.

as vozes afastavam-se e eu ficava mais sozinho. tão sozinho que me deitei no chão, onde estremeci até se apagarem todas as luzes.

Friday, June 27, 2008

these days

it’s true that i’m seen smoking
before breakfast, these days
and that a boy with hair of clouds
duck-taped something square and foil wrapped
to the inside of a newspaper kiosk
for me.

it’s true i drink whisky neat
bymyself
before bed, and in dark bar stools.
and sometimes
i leave the party
before the lines have all been drawn
and go jump fences.

it’s true i carry a toothbrush in my purse
just in case,
and i have the number to a good lawyer
tattooed on my wrist.
it’s true i recite to my friends
survival skills for bears, mountain lions
and the FBI.

it’s true i sometimes skip work
to lie on the roof and count my blessings
and my sins to strangers,
and it’s true i pour myself a stiff drink
before calling home, most times,
and i always read the obits first.

but i’m still sweet, you see,
and hug strangers just because.
i smile when i ride my bicycle
(which is often, these days)
and most of those fences
take to parking lots and playgrounds.
plus the package
in tin foil
had not drugs, nor bombs, my love
just a book
for the plane.

Monday, June 23, 2008

poder

à luz estranha das tochas decorativas do jardim, sob o ar denso do final das tardes de verão, com as encostas tímidas ainda insinuadas no fim da paisagem onde o sol se pôs, conversámos de pé.

fiz-lhe companhia naquela noite até ali, mas sabia que em breve ele teria de ir aqui e além apertar as mãos dos outros. os fatos escuros passeavam-se por ali, uns sós, outros acompanhados. os gordos encostavam-se a uma coluna ou a uma ombreira de porta – olhando o jardim desinteressados, bocejando o tédio cá para fora, desejando o sono lesto sob o calor húmido. geralmente acompanhados de suas senhoras, que tão bem decoravam o espaço, valha-nos deus com aquelas vestes absurdas de verde, de amarelo, de tantas cores, e aquelas jóias de outros tantos tons que nos passavam diante dos olhos sem que tivéssemos sequer tempo de lhes apreciar a beleza, tal a rapidez com que nos apercebíamos da fealdade do conjunto.

o jardim estava separado por um balcão de pedra esculpido em pilares polidos. junto à casa, o chão de pedra dificultava os saltos das senhoras e lá em baixo, na relva prateada pelo luar, junto à pequena fonte de inspiração clássica, passeavam de copo em riste os outros que não se rendiam ao sono e ao tédio. por ali voavam palavras distantes dos assuntos do trabalho, pouco importava a situação económica do reino-unido ou as explorações de petróleo no médio-oriente. a situação política do continente asiático também se ficava no chão de pedra onde as senhoras custavam a equilibrar-se.

enquanto ele cumpriu o seu negócio, aproveitei a noite para raros momentos de ócio em tão belo jardim. longe do sol abrasador e das lanças do calor, aproveitei as escadas que desciam até à relva e o caminho escurecido pelas folhagens em arcada para fazer descair, ponderadamente e com gesto bem cuidado, um pouco a alsa do ombro direito, anunciando o pescoço, onde descansava o fino e simples fio de prata. o copo seco foi atirado para cima de uma bandeja que passava, trocado por outro, com a dose de espumante para desfazer o sabor dos chocolates horríveis que me tinham obrigado a comer, vindos sabe-se lá donde. e ali foi o copo vazio trocado por um cheio, para que se cumprisse o destino das coisas.

a lua brilhava forte, e o ar quente acolhia o seu brilho como num abraço, a relva parecia húmida de tanto luar. sobre a prata da relva e sob o clarão da lua, encostei-me à bancada da varanda, feliz. de ombros nus ao calor, um pouco turva e confusa de sentidos, de alcoól e de conversas alheias. sentia no pescoço aquela brisa de verão que por si só nos faz sorrir. outro se juntou, elegante, gravata escura, cigarro aceso, puxando um fumo sereno. trazia um e outro copo, cheios. passou-me um com uma boa noite aconchegante e vibrei. tirei apenas uma mão do balcão da varanda, para lhe receber o copo, agradecendo com um olhar nos olhos que se deslocou em aceno para o seu peito. as palavras de circunstância são nestas ocasiões absolutamente desprovidas de qualquer substância, como aliás, lhes costuma ser característico. por isso mesmo, me falou sem enfeites logo após perguntar o meu nome. em tons de sedução tão óbvios quanto motivantes e eu sentia-me o centro, o motor da sua vaidade.

o meu corpo aberto, sob um vestido de ofensiva e pecadora transparência, mostrava-se-lhe com impulso próprio. e eu que era apenas convidada como acompanhante... lá em cima a minha companhia, olhava pelo canto do olho a minha aventura descabida, despreocupado. senti o olhar e abandonei-me. o meu poder era infinito naquele momento. em mim se concentravam as belezas e as forças do mundo todo daquele momento daquelas vidas. e o poder de ser eu, de provocar despreocupação por amor profundo, de suscitar excitação por gozo puro... era esse o meu desígnio por minutos.

o próprio poder era eu. bastava-me querer que o rídiculo cobriria de negro aquele homem e nem uma ponta de vergonha o tocaria por isso. não era ele que me excitava, mas sim eu sobre ele. não era amor ali na bancada da varanda, era poder. e mesmo assim, apeteceu-me por instantes o abandono de tudo, entregar-me. encostar nu o peito ao peito forte de outro, dele ali tão perto e tão disponível, tão entregue e desprotegido.

perderia a noção de quem seria afinal o poder. porque o poder de seduzir está na capacidade de negar, mesmo que no último momento os sopros do prazer. a corporização reduz o poder ao mero desejo mortal, comum ensejo de homens e mulheres que não se amam. por isso mesmo, o olhar que diz sim é um corpo que diz não. é isso que me eleva ao orgasmo, porque é esse o meu poder.

os copos já vazios, sob a bancada, lá em baixo o rio ria-se de mim, sentia-me intimamente palpitar.
a conversa durou o tempo exacto para que ninguém desmotivasse, pelo contrário. virei as costas com boas noites delicadas, um olhar demorado ainda o agarrou uns instantes enquanto me afastava. seguiu-me, e sem que soubesse, tremi e senti o terrível vazio do início de noite. mas eis que dou os braços à minha companhia. ao meu homem. e me vou.

Thursday, June 19, 2008

desilude-se quem se ilude

nada é tudo o que tenho,
todavia, nada mais quero
que o vazio sou eu e tudo é ilusão.

nada é tudo que tenho,
e tudo o que tenho me basta
para passar de mão em mão,
tudo o que cada vez mais sei ser ilusão.

Wednesday, June 18, 2008

sob(re) os escombros

sob os escombros
escondem-se as almas,
negras dos tristes.

não tem fé em si próprio
quem toda a vida espera por deus.

sobre os escombros
erguem-se as vozes
luminosas dos homens.

tem a força de deus
quem toda a vida tem esperança em si.

para esses brilha o sol, luz a lua.

Wednesday, June 04, 2008

bondades ao domingo

a igreja, alta, imponente, trazia-me uma calma que outros edifícios não podiam trazer. as palavras sábias da fé brotavam qual água de nascente pela voz do padre, mensageiro dos desígnios divinos dos mais altos altares do universo. palavras calmas submergiam-me diariamente numa transe inconsciente, uma meditação transcendente que ultrapassava o meu raciocínio e se fundia com cântigos e orações.

e a igreja, o altar, o crucifixo, as figuras, o tecto, as abóbadas, as arcadas, os pilares e colunas, a talha perfeita e bem cuidada contrastavam com o abandono da minha rua, com a sujidade da cidade. as palavras de deus estavam ali esculpidas e deus chorava suas lágrimas e espalhava seus ensinamentos àquele rebanho.

à saída, ainda evolvido no espírito santo e nas boas-graças do senhor, entornei umas moedas da minha carteira para um pobre amputado que chorava ao portão do adro divino. depois de ter pecado a semana toda, de ter cometido quase todos os pecados mortais e outros de menor porte, só assim poderia purgar minha consciência das ofensas a deus. o amputado ficava sempre a ganhar umas moedas para o que lhe conviesse. e que seria da minha consciência não estivesse ele ali? não há terços nem castigos que me descansem como umas bondades ao domingo.

Thursday, May 29, 2008

a minha reflexão é a minha raíz.
talvez por isso, a teus olhos, quadrada.

Wednesday, May 28, 2008

onde o mar

o mar onde vivo
é onde quero morrer
em chamas, ao éter levantadas como punhos incandescentes.

o mar onde moro
é onde quero ficar desalojado,
despojado, indigente e vagabundo.

o mar onde voo
é onde cairei sem asas,
rastejante, afundado em ondas de choque.

onde o mar vive,
sou eu que respiro no sussuro das marés,
onde a terra me abraça, o sol em fortes feixes
é deus no ar e nos trovões.

Friday, May 23, 2008

o caixão

as mentiras são as balas
as desgraças
e a fome,
as mentiras são as pragas,
as doenças
e a dor,
as mentiras são o choro
o abandono
e a solidão,
as mentiras são as valas no chão,
são a morte,
o caixão.

as mentiras hoje matam gente de verdade,
a verdade essa, porém, não morre de mentiras.

Friday, May 09, 2008

cinzento

colheram-se-me as asas
ora não vôo
porque o céu se cobriu
e o sol se tapou.

Thursday, May 08, 2008

presença

mas beijar-te
sopra um vento
de dias presentes
e eu torno a ser um livro
por escrever,
cuja pena ondula nas tuas mãos.

ausência

na palma da minha mão fica o pó
dos dias passados
como memórias indistinguíveis
da ausência de mim.

Thursday, April 24, 2008

sem título

sentes o mar
até que a saliva se tange
de sal,
de vida,
de amor,

sopras as velas interiores,
enches pulmões e alma
de vento,
horizontes,
de cor,

lastimas exangue a ignorância
nuclear do teu vazio
de ti,
dos outros,
da dor,

cantas ao vento,
contra deuses e poderes,
foste sempre o erro de quem não erra,
soubeste que ser poeta é elevar aos céus
os sentidos da terra.

Thursday, April 10, 2008

tu

vieste amanhecer-me
e agora sou um campo pleno
brilha dourado
ondula sereno

deita-me as sementes como beijos,
quando te deitares a meu lado.

percorre-me de mãos dadas com o silêncio,
os caminhos do vento que me esculpiu.

Friday, March 28, 2008

pedras contra canhões

a ofensiva dirigida erguida edificada
não é mais alta que a muralha
dos nossos corpos levantados numa só alma.

a lama negra em que rastejam
os canhões que nos apontam
os silvos de medos com que nos matam
não são mais robustos que a couraça resistente dos que gritam.

as sereias lancinantes da exploração
o massacre moral da religião
o arame farpado social da comunicação
não cobrem os olhos abertos dos que lutam.

a vigilância, a atenção, os sentidos alerta
não deixarão firme a torre da violência
e quebrarão, como ondas quebram rochas,
a vossa malha que tanto aperta.

vem, sai à rua, com as pedras na mão,
não há revestimento que salve aquele canhão!

- sem título -

e, por isso,
quando amanhecer
e eu for também o substrato dos outros,
e os outros o meio por que respiro,
seremos, até ao anoitecer,
da poesia fruto puro.

segundo todorov (poética)

"a literatura é a forma de arte em que a substância, a linguagem e o meio são um só."



a transcrição não é exacta, mas reflecte a tese de Todorov. e esta é das poucas teses que, por si só, são além de brilhantes, "poéticas".

Tuesday, March 25, 2008

nebulosa

dentro de mim
crescem estrelas,
e sinto-me ascender,
acender, em chamas,
em luz escondida
que me ilumina
em sorrisos e brilhos.
beijar-te, mesmo longe,
inteiramente, aprender-te
lentamente, como vejo uma flor
florescer. e o teu olhar,
sublime, envolve-me num sol só meu.

Thursday, March 13, 2008

(ab)surdo

mais um dia passava, frenético mas lentamente. lá fora os ruídos da rua, dos carros apressados, das palavras caóticas pela chuva metódica não chegavam aos meus ouvidos. o meu ruído era demasiado intenso. sobre ele nada poderia passar. as palavras da mulher que me limpou a secretária, as palavras do homem gordo que me dava ordens sentado, as palavras do colega que gabava as notas do filho, todas me passavam inexoravelmente sem provocar nenhuma vibração. todas se misturavam com o meu ruído, as minhas ilusões.

mais um dia, e o fumo de som que me invadia, tomava novamente conta de mim. pior, tomava mais e mais da minha alma. algo como o ranger constante de uma porta antiga. era esse o som da minha ilusão.

mas do ruído do meu próprio ser crescia a impossibilidade de ultrapassar as minhas entranhas. tudo à volta é o meu som. na secretária, pousados os lápis cansados de riscar e rabiscar a distracção. lá fora as árvores despidas são quem me reflecte. os meus únicos espelhos.

(...)

hoje à noite escrevo a nota em que me repouso. uma carta para ninguém, mas finalmente silenciosa.

"matei-me porque o silêncio é o meu único repouso. matei-me porque não consigo viver ao som da campainha que toca o som da minha vida."

ali mesmo no funeral, o colega do filho com boas notas diz para o homem do lado que não compreende, que nunca ouvira tal campainha mesmo trabalhando tão perto de mim. eu estranho porque aquele ranger soava tão alto - afinal o meu colega era surdo.

Wednesday, February 20, 2008

mutilação

rastejo na lama de todos nós,
sangue vivo dos lamentos humanos,
desumanos... mesmo primordiais.

cai o olhar em abandono,
um pano branco ondula no ar.
podem os abutres poisar, (vinde necrófagos ao festim!)
assomar-se da alma despojada de alegria e de tristeza,
saciar a fome,
dar graças à abundância
da nossa infinita pobreza.

já nem palpitam as veias,
a dor esvai-se lancinante
em rasgos de culpa e de perdão.
e os corpos exangues arrastam-se pelo chão.

à terra o que é da terra

desprendem-se pétalas
sem espasmos

uma a uma
à terra o que é da terra.

como neve,
naturalmente
sobre o manto branco das sílabas do tempo.

realidade

busco dentro a inspiração
mas não há musas que valham
à tristeza.
nem sorrisos que valham à desilusão.

quando me cresce por dentro,
qual erupção,
a vontade de dizer não!
nascem-me pelo corpo as palavras
que pintei nos muros da tua solidão.

e lembro a força das mãos. das nossas mãos.
que enlaçadas florescerão primaveras da raiz da razão.

Wednesday, January 30, 2008

mensagem

é com a mão pousada na tua pele,

percorrendo com meus dedos as tuas costas suaves,

os meus lábios sobre os teus,

com as tuas palavras esvoaçantes,

e os teus sussurros soprados no meu ouvido

em murmúrio

que me ultrapasso, me acendo,

facho de luz nas noites antigas distantes.

não-criação

sou ignorante,
sobretudo mendigo sabedoria.
à minha volta o mundo,
mais e mais, a cada vez, gigante.
nem me restam as palavras e a poesia
porque a não sei, para além das letras.
que em desesperadas derradeiras tentativas
ainda vou desenhando instintivas.
e como nuvens, naturalmente involuntárias,
pintam no céu a imaginação.

Wednesday, January 23, 2008

agroal

eu estive no Agroal que por si só é poesia.

olhei as árvores pendendo sobre o ribeiro num abraço de irmãos.

sob o céu o rio sereno de água fria,
em que não molhei as mãos,

mas bem podia.

Tuesday, January 08, 2008

revolução

por ora resiste, imortal
filha do passado
de presente adiado,
e futuro fatal.

do processo, é povo o sujeito,
nascido da têmpera do aço
a duros trabalhos sujeitado,
que mesmo de rosto sujo,
tem-no sempre lavado.

Friday, January 04, 2008

altar fingido (ou o Roubo Material da esperança Transcendente)

A terra molhada dourada pelo sol ainda soava à música que tinha tocado toda a noite. Os tambores da terra troaram persistentes enquanto a feiticeira da aldeia promovia a liturgia floral e os homens e mulheres choravam.

A fogueira de chamas vivas deixara no seu lugar as brasas mortas.

Não muito longe, ela preparava a cama com os lençóis de seda do oriente trazida por ventos encomendados, após ter guardado as oferendas do povo num altar pouco próprio, espalhado sobre uma mesa de madeira-carmim importada que se prostrava na divisão de marfim em que cozinhava. Na noite seguinte teria beterraba azul e quimera fresca para o manjar.

No sopé da encosta, onde ainda não raiava luz, nas casas pobres de lama e pedra-vítrea, pais e mães comiam pão antigo e para os quatro filhos um figo. Da sua janela, via-os sem compaixão.