Friday, September 12, 2008

trevas II

quando acordei já sentia na boca a sede de sangue. aquele odor férreo que nos cobre a língua, como a fome. afinal de contas era apenas mais um dia de trabalho e por isso tinha deixado os punhais preparados na noite anterior. lavados e afiados numa pedra que carrego para onde vá.

tirei de dentro da sacola uma peça de pão duro e enchi meia taça de vinho acre quase quente. antes de matar, precisava de comer. claro que a pestilência da rua, mesmo de madrugada, penetrava o meu quarto com a mesma intensidade que os primeiros raios oblíquos do sol o faziam. fétido era o ar das manhãs porque carregava a podridão da noite. respirava-se ainda o vómito dos velhos pedintes, o suor dos vagabundos, o calor das mantas sujas nos bordéis e em algumas esquinas, mas pior que tudo isso, respirava-se a sujidade das almas dos homens e das mulheres que vivos, pareciam mortos.

comi o pão, bebi devagar o vinho. apesar dos odores, apraz-me saborear o a taça de alumínio vertendo aquele rubro néctar. cobri a cabeça com o capuz verde escuro sujo, limpei o sangue das luvas e atei ao dorso os punhais afiados. é bom ver que na sua superfície sou mais bonito que em qualquer espelho polido, porque eles toleram as minhas cicatrizes e, mais que isso, compreendem-nas como suas.

com o capuz desci as escadas e já na praça principal caminhei pelo beco até à igreja, esse templo ubíquo e maldito, antro das ratazanas desta época. aí me prostrei perante as paredes nuas de pedra poderosa, em respeito por todos quanto ali procuravam o sossego escondido e para não levantar suspeitas de quem por ali procurava o perdão que não obtinha de si próprio.

aos 28 anos tenho esta capacidade de me fazer passar despercebido, principalmente no escuro. e que melhor lugar que a igreja? subi à torre e daí saltei para o telhado castanho da casa do lado, à distância de uma viela onde mal caberia um cão. deixei em casa a besta, a zarabatana e o veneno. hoje trago apenas os punhais e serão eles a minha mão, ou a mão de deus para quem assim creia.

ainda ouvi a conversa na esquina por baixo de mim: dizia ele que geria a cidade com transparência, que devia fidelidade ao povo, mais que ao reino e que à nobreza. dizia para quem quisesse ouvir. e à sua volta juntava-se a orla mendicante do costume, os coitados, os trastes e os moribundos. curiosamente, já de madrugada o anafado agente real, assim ordenado por vontade do benevolente rei, mostrava a gordura das belas costoletas que acabara de trincar. hábito repelente esse de não limpar a beiça depois da refeição a que se alia sempre o de não lavar as mãos.

pouco tinha eu que me preocupar com política, ou com as conversas do homem ridículo. falta-me receber metade do pagamento por este serviço e só a receberei depois de terminado, o serviço entenda-se. que é o mesmo que dizer, depois de terminado o agente real. e o odor do sangue porco do homem subia até mim no topo do telhado e aguçava-me o olhar, como quando o peregrino falcão foca a presa no solo e se precipita em vôo picado sobre o rato, precipitar-me-ia agora sobre o grande mamífero. um punhal entre as costelas e outro cortando as veias palpitantes do pescoço. jorrando o sangue, novamente minhas luvas se tingiram. e três ou quatro à sua volta se espantaram, outros tantos cobriram o corpo com as mãos procurando riquezas escondidas. ninguém tentou sequer deter-me. mais à frente, depois de dobrada a esquina, tirei o capuz para as costas, deixei o sol mostrar a face insuspeita e guardei novamente os punhais depois de os sacudir. terminado o agente real, agora guardo comigo a prova de sua morte: a sacola dos subornos que ele trazia no bolso.


sem saber porquê, escrevo sobre assassinatos na idade média. este é o segundo assassinato narrado. depois do primeiro.

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