a praça tresandava a peixe moído e o cheiro adocicado das folhas de couves a apodrecer enjoava. ladeada por pequenas casas, a praça ali descansava, redonda. duas ruas, mais uma viela para ali confluíam. era o centro da cidade. construções de pedra unida por uma pobre argamassa castanha davam à praça o ar triste da idade em que vivíamos. idade negra, não como a noite, mas como um dia passado em clausura.
ontem tinham ali estado famílias de comerciantes, vindos de fora, de longe e de perto. uns com peixe. outros apregoando legumes. carne não. chegavam em carros e mulas, com o cuidado de trazer tudo bem acondicionado, não fosse cair um nabo ou um precioso arenque salgado.
hoje era o sanatório das doenças da alma e do corpo. a viela que dava para um pequeno largo, era o canal mais habitado. no largo, sob um arco de uma ponte, uma árvore sem vida enchia o espaço, contrastando com as candeias acesas que iluminavam as placas de madeira, anunciando estalagens e casas de pernoitar. nas janelas assomavam-se mulheres tristes. a rua grande, ao estilo de avenida ia direita às portas da cidade, viradas a nascente para que ninguém se esquecesse de acordar. a outra rua, mais delgada, mas decorada de flores púrpuras e brancas pendendo das varandas e dos candeeiros levava aqueles que quisessem à casa de deus.
foi dessa rua que saiu pairando o bispo obeso. passava censurando a própria existência do homem, de nariz feio, erguido acima dos cheiros mundanos do peixe e das alfaces castanhas. acima, principalmente do cheiro a humanidade perdida pelas ruas escuras. ele era um ostensivo animal do clero. eu tinha um papel naquele dia e não seria o último.
da janela do meu quarto por uma noite, olhei com calma a besta que passeava os anéis do poder, carregando o deus da alimentação anafada no ventre. sorvi o último trago da aguardente que uma mulher me tinha deixado sobre a mobília, como um presente. desci a escada num salto. olhei de novo. os vagabundos mendigavam bênçãos ou palavras divinas, na esperança de que fossem feitas de prata ou cobre. outros, como cães acossados, remexiam flagrantemente os restos espalhados no chão, aguardando a misericórdia tão propagandeada nos cartazes à porta da igreja. o bispo que ali passava não era um homem, era o poder.
tirei o pequeno estilete do cinto. corri. passei como um gato, lesto e silencioso, a minha garra de metal junto ao pescoço do homem que falava por deus, contornando um séquito de inferiores padres com a dignidade de um bom ladrão.
enquanto o sangue jorrava, misturado agora com as escamas e as tripas do peixe de ontem, abraçando os legumes liquefeitos, os trajes encardiam-se. o bispo já não flutuava acima do mundo. ninguém viu a sua alma voar, nem nenhuma aura se fez descobrir. apenas sangue e imundície. de repente, morrera o poder. foi pilhado o corpo, roupas, bolsas, cordões, sandálias, anéis e outras jóias, como a qualquer outro teriam sido. entre os padres que rodeavam agora o cadáver, não existia preocupação solidária. nenhum protegeu o corpo, e um chegou mesmo, disfarçadamente, a guardar uma pequena bolsa. entre eles, cruzavam-se olhares e o pensamento, sabiam-no bem, era igual em cada um. pode ser que me ordenem a mim.
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1 comment:
;)
miau...
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