Monday, November 26, 2007

silenciaram-te a esperança

na manhã fria, ferve o leite enquanto reprime a raiva que só por força não se lhe arranca do peito.
e prepara os últimos restos na carteira rasgada para o jornal. os dedos tremem-lhe, dignos, ao frio.
estudou. sabe fazer. meia-vida trabalhou, nunca foi repreendido. aliás, sempre se esforçou para não o ser.
no entanto, fazem o mesmo por menos, dizem-lhe. - já ali ao virar da esquina -
pôs o fato-macaco de lado num dia em que os jornais anunciavam as mulheres chorosas da fábrica que fechava mesmo ali ao lado.

mas nunca publicaram seu rosto erguido confiante,
ombro-a-ombro com os camaradas que à porta da empresa erguiam, resistindo, um futuro melhor.

hoje, ele luta ainda. as mulheres da fábrica do lado continuam carpindo.

dialéctica

há uma força que cresce
na proporção da consciência.

há sempre mais um camarada,
mais longe é sempre o caminho
e nunca perguntes quando acaba,
que luta que é luta não abranda, nem acalma.
não esperes recompensa
senão sorrisos ou lágrimas em união.
a luta, nunca a verás na televisão.

porque há uma consciência que cresce
com a tua força em proporção.

matéria

apalpa com todos os dedos o teu mundo
esfrega, sente, agarra.

e não passeies os olhos pela rua,
sem ver quem por lá passa.

sente esse teu pedaço vagabundo sem controlo.
e saboreia as cores do vento que te fustiga,
mas agarra-te bem que é longa e sinuosa a viagem.

palavras de vento

palavras
soltas
vibram
em frequências de espectros inaudíveis.

actos
vazios
vagueiam
nas dimensões longínquas inatingíveis.

o indivíduo

era um indivíduo
uno, tão único e brilhante,
tudo à volta são sombras
tal luz ofusca até o sol.

individualmente deslumbra
e está para ser escrito o livro
cuja estória
não é da primeira à última
uma única página, a sua.

é tão individual,
tão iluminado,
inteligência avançada,
que os espelhos não reflectem outro
senão ego tão destacado.

tamanha inteligência,
sem colectivo. - é um não são dois! -
o espaço ocupado é todo,
no mundo está sozinho, pois.

Saturday, November 03, 2007

engano

à beira do aqueronte esperando a imortalidade. nos confins da vida, vi a morte. pedi a caronte que me levasse, de inspiração fingida, para o meu fim. o óbulo foi-lhe entregue na margem mas o sabor a níquel ainda me envenenava a boca.

pouco agitadas as águas para um rio infernal.
a meio, saltei e mergulhei fundo para a mortalidade.

manhã

ascende-me o corpo,
quando te abraço,
a poesia em espiral de arrepios.

acordo.
é outono sem frio,
e no teu corpo brilham demoradas manhãs.

e lá fora, o orvalho fresco reflecte,
sereno, os meus lábios nos teus.