Thursday, December 13, 2007

o mito segundo narciso

quando ela morreu, o mundo, infelizmente, não cessou. e os dias passavam agora penosos, eras a cada lua. na floresta onde caçavam, vagueava inconscientemente, entorpecido. havia um vazio nos seus olhos que só viam saída nas lágrimas cheias que pendiam, permanentes.

quando ela morreu, o mundo, infelizmente, continuou. e ele, perdia a continuidade do seu ser, um pedaço de alma, como um pedaço da vida. narciso arrastava os pés por entre as árvores. eco seguia-o sentindo a dor.

nas sombras oblíquas da floresta, por onde haviam passeado as musas nas horas matinais que se iam e por onde hades passearia nos instantes que se seguiam em busca de perséfone para se saciar, jazia um lago que reflectia o céu por entre folhagens. quando caiu, debruçou-se, infinitamente triste sobre as águas espelhadas e serenas.

ali, mesmo ali, jazia a imagem gémea dela. não mais desviou seus olhos da água que chorava com ele. eco, bela, olhou seu corpo moribundo e chorou. no lugar onde narciso adorou a sua irmã, deixou uma flor que ali cresceu.

Monday, December 03, 2007

pai, filho e espírito santo

I - pai

criaste um deus para te servir,
balofo parasita,
idiota prestamista,
tem menos gosto a tua lagosta
que a sandes da minha marmita.

(não ajoelho mais
a esse deus de sacristia
promete abundância à noite,
escassez durante o dia.)
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II - filho

põe de lado o terço obscurantista,
construímos futuro rumo à conquista,
vamos juntos, dá-me a mão
se não és filho de deus
foste sempre meu irmão.

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III- espírito santo

às vezes até lamento,
que nunca tenhas existido.
teu pai seria o primeiro de castigo merecido.

vontade do trabalho

ergue mais alto a voz,
ergue mais alto o rosto,

mais alta a dignidade,
que se levanta um sol depois de posto.

levanta os olhos,
e no horizonte verás liberdade.

já não sois escravo nem servo,
e vão-se rompendo as rédeas da verdade,

já não tendes dono nem senhor,
mas falta cumprir-se a tua vontade.

Monday, November 26, 2007

silenciaram-te a esperança

na manhã fria, ferve o leite enquanto reprime a raiva que só por força não se lhe arranca do peito.
e prepara os últimos restos na carteira rasgada para o jornal. os dedos tremem-lhe, dignos, ao frio.
estudou. sabe fazer. meia-vida trabalhou, nunca foi repreendido. aliás, sempre se esforçou para não o ser.
no entanto, fazem o mesmo por menos, dizem-lhe. - já ali ao virar da esquina -
pôs o fato-macaco de lado num dia em que os jornais anunciavam as mulheres chorosas da fábrica que fechava mesmo ali ao lado.

mas nunca publicaram seu rosto erguido confiante,
ombro-a-ombro com os camaradas que à porta da empresa erguiam, resistindo, um futuro melhor.

hoje, ele luta ainda. as mulheres da fábrica do lado continuam carpindo.

dialéctica

há uma força que cresce
na proporção da consciência.

há sempre mais um camarada,
mais longe é sempre o caminho
e nunca perguntes quando acaba,
que luta que é luta não abranda, nem acalma.
não esperes recompensa
senão sorrisos ou lágrimas em união.
a luta, nunca a verás na televisão.

porque há uma consciência que cresce
com a tua força em proporção.

matéria

apalpa com todos os dedos o teu mundo
esfrega, sente, agarra.

e não passeies os olhos pela rua,
sem ver quem por lá passa.

sente esse teu pedaço vagabundo sem controlo.
e saboreia as cores do vento que te fustiga,
mas agarra-te bem que é longa e sinuosa a viagem.

palavras de vento

palavras
soltas
vibram
em frequências de espectros inaudíveis.

actos
vazios
vagueiam
nas dimensões longínquas inatingíveis.

o indivíduo

era um indivíduo
uno, tão único e brilhante,
tudo à volta são sombras
tal luz ofusca até o sol.

individualmente deslumbra
e está para ser escrito o livro
cuja estória
não é da primeira à última
uma única página, a sua.

é tão individual,
tão iluminado,
inteligência avançada,
que os espelhos não reflectem outro
senão ego tão destacado.

tamanha inteligência,
sem colectivo. - é um não são dois! -
o espaço ocupado é todo,
no mundo está sozinho, pois.

Saturday, November 03, 2007

engano

à beira do aqueronte esperando a imortalidade. nos confins da vida, vi a morte. pedi a caronte que me levasse, de inspiração fingida, para o meu fim. o óbulo foi-lhe entregue na margem mas o sabor a níquel ainda me envenenava a boca.

pouco agitadas as águas para um rio infernal.
a meio, saltei e mergulhei fundo para a mortalidade.

manhã

ascende-me o corpo,
quando te abraço,
a poesia em espiral de arrepios.

acordo.
é outono sem frio,
e no teu corpo brilham demoradas manhãs.

e lá fora, o orvalho fresco reflecte,
sereno, os meus lábios nos teus.

Monday, October 22, 2007

afinal

corre-me sangue pelas veias
qu'eu vi.

Sunday, October 21, 2007

outubro

naquele dia de outubro os raios do sol caíam oblíquos sobre a terra e passavam pelas cortinas translúcidas em tons de fotografia antiga. no ar do quarto a luz atirava-se como lâmina diáfana e etérea por entre alguns recantos cortando a escuridão. deitados sobre a cama larga e desfeita poderiam ver o corpo um do outro como ilhas em relevo, sobressaindo um peito, um joelho, uma anca, um ombro também.

percorrerram-se. destinaram-se. até que a luz desapareceu.

Thursday, October 11, 2007

desassossego

na verdade,
sim--eu quero
ser exactamente
como todas as mulheres
como cada uma
a combinação
o conjunto
a soma
das mulheres
que já tiveste.

eu quero ser a mexicana
que se levantou cedo
para fazer salsa fresca.
quero ser a que mudou de país contigo.
quero ser a que te dava presentes
e de quem gostavas pouco
ou mais ou menos
ou ainda menos.
quero ser as de anos lentos
as de noites curtas,
as de sono leve.

quero ser aquela com quem acordaste
e te levantaste
com languidez
enquanto o prédio se derramava em lume.

disse que não queria
porque é o que dizem os amantes
nestas ocasiões,
mas a verdade

é que quero ser
a multiplicação
das mulheres
que já te amaram
que já se te deram
que já te quiseram

e assim amar-te, querer-te, dar-me
sem desassossego,
sem ciúme, sem cio,
ainda mais.

Tuesday, October 09, 2007

vírus

a ti, porco
que te passeias vaidoso,
yuppie merdoso,
snob asqueroso,

a ti, ratazana
molhada do esgoto,
cérebro roto,
cuspo, perdigoto,

a ti, vírus
febril, contagioso,
pútrido, venenoso,
os homens não levarão flores
quando morreres.

a tua morte será o esterco
de que em vida te orgulhaste.

não se lavará tua campa da traição e ignomínia
e de ti não rezará nunca a toponímia.

Wednesday, October 03, 2007

as pessoas caídas

tenho as lágrimas presas por fios de vontade
que nunca se rompem nem partem,
tenho o sofrimento latente,
palpitante, de incandescente intensidade.

dói-me a gente,
nunca foram anjos as pessoas caídas
que dormem pelo chão da cidade.

Monday, October 01, 2007

por detrás do muro

enquanto fumávamos aquele cigarro juntos, pelo carreiro, trocámos palavras sobre a paisagem. sobre a planície que se estendia a nossa direita elevando-se aos céus lá ao fundo antes de mergulhar a rocha no mar. aquele verde subjugou-nos, involuntariamente. aqueles afloramentos de profundidade exposta desenhados pelo vento e pela água primordial foram a matriz de todo o nosso pensamento. e o cigarro queimava lentamente.

e quando parámos à sombra da parreira que subia à nossa esquerda, contemplámos apenas a grandeza dos campos.

quando tomava café sozinho de manhã, li no jornal sobre o fogo que lavrou o verde e as terras. que tornou o verde em cinzento e a terra em morte ígnea. a parreira aparecia numa fotografia em página impar do jornal, mas parecia apenas um desenho a carvão, sem folhas, ramos contorcidos e encurvados como que protegendo-se da dor. o muro antes caiado de onde brotava a parra, preto. era dia de breu na encosta da serra.

e uma caixa de texto no jornal, na mesma página, lia ainda que por detrás do muro morava gente e que preparavam a vindima para setembro. mas dizia mais. que não haveria vindima porque suas casas tinham sido comidas pela terra que ardia.

e eu lembrei-me do passeio ao longo do muro antes caiado. e lembrei-me que falámos apenas da paisagem. por detrás do muro estavam pessoas.

Thursday, September 27, 2007

diálogos alegres de uma manhã

- vamos! levanta-te que é tarde!
- dói-me o corpo da surra que levei ...
- por isso não tive mimos...
- foi duro o dia d'ontem.
- isso a mim que m'importa? põe-te a pé, vai trabalhar!
- porra, já vou. prepara-m'um lanche e o queijo p'ragora.
- queres água quente para a cara?

aliteração em "t"

os dias passam pelos descontentes,
sem contentamento.
o conteúdo, esse, o do costume,
contundente.


mesmo assim, sou mais contente
por sermos cada vez mais os descontentes
conscientes.

provas de sobrevivência

caminho-me por dentro e por fora,
sem cartografia.

passo um rio, que me separa, para o outro lado,
a nado que me faltam pontes.

Friday, September 14, 2007

não respira...

nas nuvens sobre o mar
há um rosto carregado

se deus não estivesse morto,
diria que estava zangado.

ar livre

são palavras à deriva
no rio das banalidades,

são apenas letras pegadas,
sem utilidade por aí...
no vazio,

até ser eu que as quero
e que o peito me bata
eu fosse uma vela
e soprasse vento por dentro.

e então juntam-se os pedaços do mundo disperso
e completa-se sozinho o quebra-cabeças
da indecisão.
a m o - t e .

Thursday, September 06, 2007

2007

a festa edifica-se,
uns constroem-na e outros visitam,
outros ainda vivem para a destruir

mas enganam-se que a força une mais que cimento,
e os tubos resistem mais que as vigas do capital,

venham daí amigos, que a festa vai começar,
em frente camarada, que a história não terminou afinal.

a festa vive-se,
uns constroem-na, outros visitam,
e ali está de pedra e cal.

Thursday, August 30, 2007

setembro

caiem noites
levantam-se manhãs

vai-se agosto em jeito de despedida
e o sol doura-se para setembro

os tons do céu são nossos porque os abraçamos
e vibra em nossos pulsos a festa que fazemos

a luta a cada dia como o fole
que sopra o ar que respiramos

Saturday, July 28, 2007

ausencia

passei

horas


a tentar lembrar-me da tua voz,
desde a conversa que tivemos,
em tons de teclado,
sobre a ausência de som.

passei horas e soube do que me lembro.

lembro-me das palavras quase todas-todas-quasetodas
lembro-me do abraço do aperto do abraço que se fez beijo.
lembro-me do vinho, da garrafa de whisky no meu degrau da frente
lembro-me
palavra por palavra
o poema que escrevi numa lingua que não entendes.
lembro-me de pensar todo o dia
que me arrependeria
se não te fosse ver.

lembro-me do arrependimento,
todo o dia
e os dias após
e os dias desde.

e apesar de tudo, escapa-se-me a lembrança da tua voz.

e é como se esse roubo fosse ainda mais
a ausência de ti.

Tuesday, July 24, 2007

quimeras

eu já não sou uma flor,
nem a crisálida que já fui.

agora sou um fruto alado, qual quimera.
(do ouro do teu olhar?)

Tuesday, June 26, 2007

palavras

palavras,
vós sois a poesia.

e nós somos os labirintos por onde viajam
vossos átomos de verbo e fantasia.

até que cesse o vento que vos faz voar,
e repousem nas asas do poema
que acabam de criar.

Sunday, June 10, 2007

tremem ao vento do teu sopro

são olhares cruzados
frente a frente,
e sorrisos trocados
num abraço quente.

pouco apertado,
que a distância é vasta,
como um deserto, mas diferente.

e bastam suspiros ao ouvido,
para tremer as árvores do meu ser,
sejam eles do teu peito junto a mim,
e nada é do que tinha sido.

Monday, June 04, 2007

como cai uma flor

no meu jardim há uma árvore. dá flores bonitas na primavera e só se despede delas no verão.

cuido dela como se deve cuidar qualquer árvore. e ela ergue-se vigorosa abraçando as estrelas com braços que só dançam quando lhes sopra o vento. claro que ela trata de mim como é suposto ser tratado por uma árvore. ela acolhe-me sempre, verdejante ou negra, tanto faz.

junto à raiz a terra tem um cheiro diferente, cheira a comunhão. e seja verão, outono, inverno ou a outra estação há sempre nela um espelho múltiplo de sensações. há um jardim tenebroso e oculto para as minhas lágrimas, uma sombra fresca para os meus sorrisos de criança.

quando senti medo da morte, um dia, foi a ela que me cheguei.
caíam os raios de sol oblíquos como se o próprio deus sobre a terra se lançasse.
olhei a copa com flores, fiz as perguntas que tinha a fazer.
a resposta foi a mais clara: lenta e naturalmente, caiu uma pequena flor.

rastejo por medo

nem deus nem o diabo
me mostram caminhos para trilhar,
sou eu quem desenha os rumos a carvão
sobre os dias e as horas que passam,
msmo sem ninguém os contar.

nem éden, nem trevas
ameaçam meus destinos,
renego a luz e a escuridão,
e cruzes, nenhuma, sobre o meu dorso,
que bastam já tantos os que rastejam.

Monday, May 21, 2007

distância do futuro

eu quero o verbo inconstante
e a voz selando o tempo
em sussurro permanente.

e ser sempre manhã,
mesmo de noite.

quero tanto tanto tanto
que o futuro não seja distante.

Friday, May 11, 2007

os privilégios dos trabalhadores

ali estavam os cálculos em cima da secretária. acabados. a matemática batia certo, a física também. os resultados apareciam como colunas e colunas de algarismos e alguns com letras. continham em anexo o relatório da litologia e da geometria, o grau de degradação da rocha, a sua mineralogia e fracturação. a estabilidade da futura galeria era garantida. ele recostou-se, finalmente, na cadeira, em sinal de cumprimento da tarefa.

no seu gabinete, o tecto estava bem firme. e nenhuma carga explosiva iria mudar isso.

fez a entrega ao estafeta interno da empresa. embrulhado num plástico transparente seguiam os cálculos para a próxima explosão de uma das frentes da mina. este era um dos seus primeiros trabalhos na empresa, depois de ter passado uns poucos de anos na ajuda a um velho engenheiro que se reformara. esse, coitado, um homem mole. embora experiente e competente, não fazia nada sem ouvir os trabalhadores. também… era já velho, podia temer o erro. compreendia a sua fraqueza, embora ele, jovem e forte, decidido e competente engenheiro, não estivesse disposto a submeter-se à discussão com os mineiros. braçais tanto quanto ignorantes em matéria de estática, de pressões e dinamitagem.

lá vão os papéis, de mão em mão. terminarão no fim da linha, no operador lá em baixo onde a luz não chega. não chega a luz, mas chega a máquina ruidosa, as brocas gigantes, as lanternas das pequenas e das grandes. lá em baixo, onde o sol nunca se deu a conhecer porque o inferno não tem sol, há suor em vez de cálculos, amizade em vez de soberba.

- fodasse, o gajo diz que a carga é pa meter aqui!
- o gajo tá parvo… vou dizer-lhe que não.

sem que soubessem, o sol cá em cima ainda espreitava e algumas pilhas de minério lavado emitiam pequenas estrelas de brilho. granitos aos montes. pegmatitos aos blocos, grandes.

- oh, senhor engenheiro, esta merda não vai dar. não se vê logo que fica lá alguém debaixo?
- não tenho necessidade, nem ordens, para discutir os cálculos convosco.
- então venha lá abaixo connosco pôr a carga, que é para ver com os seus olhos o que lhe digo.
- não tenho de ir lá abaixo, já fui lá ao fundo a semana passada.

“que filha-da-puta arrogante… está-se mesmo a ver que isto vai dar merda.” pensou, robusto e determinado rumo ao fundo da mina. a terra vai gemer outra vez. ele podia não perceber os números da estática, não compreender as forças, as tensões e as pressões. mas afinal de contas conhecia a pedra, vivia-lhe no ventre dia e noite, se dia e noite houvesse no fundo de mina. ele e os outros como ele falavam com a pedra. era perante ela que por vezes corriam lágrimas de saudade da família, e perante ela pingavam o suor rude e incessante do trabalho. a força dos homens ali em baixo misturava-se com a força da pedra. uns partiam a outra, mas essa relação era como um abraço. homem e pedra, trabalhador e matéria-prima. pelo meio a ferramenta, propriedade do patrão.

de rosto carregado, inexplicavelmente rubro, desceu até à frente da mina que ainda hoje explodiria. os outros camaradas perceberam bem o resultado da conversa na superfície. as máquinas começaram o seu trabalho. as cargas foram colocadas no exacto sítio previsto pelo engenheiro. tudo no lugar, a dinamite pesada a rigor e ajeitada como devia de ser. a engrenagem da explosão arrancara. a detonação era feita cá de cima, pois claro, por motivos de segurança no trabalho.

a terra gemeu, rugiu e tremeu. um estrondo abafado e um pó que ninguém viu. uma nova frente de mina e uma nova galeria sob o chão agora se desenhavam.

a estabilidade garantida pelos números e papéis do engenheiro estava comprovada! a galeria não abateu. os mineiros de todos os patamares e profundidades entreolharam-se.
bem, tudo normal. daí a pouco tempo, poderiam descer ao novo espaço criado pela dinamite.

era ainda noite quando, dias depois, o primeiro homem chegou para retirar os frutos da explosão. tudo foi simples, rápido e certeiro. a pedra esmagou-o ignorando a sua dor. o seu corpo nem enchia o caixão que, por motivos de respeito à família foi desenhado como se fosse para um corpo inteiro e intacto. a vila inteira chorou mais um mineiro.

nas galerias da dor cá em cima na superfície, o negro vestia as mulheres todas. lá em baixo a extracção continua. o engenheiro sentiu a sua alma fugir-lhe entre os dedos.

Wednesday, May 09, 2007

a ti

dizem que com elas podias tocar piano,
saltar por cima de negras e brancas,
de um dó ao outro, sob o Sol.

(olhas as mãos agora)

dizem-te que brilhas, como as estrelas.
e tu, sempre brilhando entre os sorrisos que acendes,
apagas-te.

com as pontas dos dedos

as tuas mãos finas são brancas,
e desenha-se o brilho dos rios
nos teus olhos.

são noites,
são dias,
a quem ajoelho em oração irreligiosa.

são as pontas dos meus dedos
nas tuas ancas.

contradição

como um dia em que o mar é escuro
e o ar carregado mas puro,
e a noite cai calma
como uma mão sobre a alma.

são contradições do corpo,
o negro, o branco,
e os beijos.

Saturday, May 05, 2007

abraço


da ranhura, da estreitura, do enquadramento infeliz
vejo a rua
vejo a rua
vejo a seguir-me sem ti.

vejo vontade
vejo
à minha frente
estenderem-se memórias de outra gente.

dizes que é cedo, que ainda há tempo.
o meu relógio é lento.

vejo o teu corpo sobre a minha mesa.
vejo o querer
o desquerer

vejo o partir e o despedir.

mas enquanto me cedo
--relógio lento--
lambe-me alma,
ainda há tempo.


(poema a 2 mãos - languidez e pedras)

Wednesday, April 11, 2007

a luz e as sombras

I

As suas mãos tremiam ao segurar a caneta e o dia ameaçava diferenças. A sua consciência estava tranquila, não tinha colaborado com a ditadura, julgava. No entanto, lá fora, o plenário de trabalhadores em fervorosa algazarra, julgava por si próprio quem tinham sido as vozes do fascismo.

Dias antes, o mundo tinha mudado. Na pequena terra, o poder da escuridão estava ruído e a luz avançava intrépida sobre a terra. O mar acalmou quando o povo triunfou e a cor dos edifícios mudou. Por todas as fachadas, abriram-se janelas e portas para deixar entrar a revolução e deixar abalar o mofo que, de tanta acumulação, prendia a respiração.

Ali, no gabinete, porém, a revolução pintava-se com as cores do medo. Nas ruas, cada um trazia jornais dantes proibidos debaixo do braço, abundavam ícones vivos e mortos e existia uma esperança a pairar no ar. Uma esperança tão justa e genuína que todas as ruas se transformavam em campos de liberdade, com um cheiro de terra molhada, como aqueles que cheiramos apenas nas madrugadas após uma noite de chuva sobre os campos.

Em algumas, poucas, casas havia famílias que pareciam ninhadas de ratos, nervosas, amedrontadas, escondidas. Famílias que teimavam manter pintado de negro o interior das casas, onde o bafio era bem-vindo e onde as dispensas nunca tinham conhecido o vazio. Era um medo conspirativo que viviam, não queriam perder o que tinham roubado ao abrigo da sua própria lei. Criminosos escondidos.

A caneta não conseguia assinar nada mais. O dia estava prestes a desabar e pouco faltaria para que colapsasse ali mesmo sobre ele. Olhou de soslaio para o exterior. No pátio havia mãos levantadas, punhos cerrados, nuvens de gritos determinados. Apercebeu-se de que um deles se elevava sobre um pequeno palco improvisado com mesas do estaleiro e que anunciava algo. Nesse momento, o seu escritório, a sua pequena morada, escureceu ainda mais, como se o ar se tivesse tornado sólido, num inexplicável fenómeno de sublimação. Lá fora, apercebia-se, houvera pequenos momentos de silêncio. O seu último olhar viu centenas de mãos levantadas apontando o céu. Eram todas as mãos o tomar controlo do seu destino. Eram votos.

Ele nunca colaborara com a ditadura, pensou. Mas esqueceu-se que naqueles dias o julgamento era colectivo e material, o seu pensamento não podia ser juiz em causa própria, ninguém o permitiria. Foram muitos os anos nocturnos. Foram vidas que rastejaram na lama. Lá fora, facilmente o silêncio foi considerado cooperação. Para eles, aqueles que calaram, colaboraram. De facto, assim, era culpado.

II

No seu último lance de coragem tímida ainda lançou o olhar novamente através da vidraça. Lá fora, o verde das folhagens que ladeavam a vedação, carregara-se. Houve mesmo um momento em que as árvores cresceram e algumas inclinaram-se mesmo para testemunhar a libertação dos homens. Afinal de contas, mantiveram-se sempre ao lado deles. Muitas lhes deram abrigo em dias difíceis. E não tinham carinho nenhum pelo cinzento que a pouco e pouco as matava, numa condição humana que poucos lhes reconheciam. O sol lá fora espalhava-se em raios deslumbrantes, barrava alegremente nos sorrisos abertos.

O ar estava límpido em contraste sobrenatural com a viscosidade do ar do escritório onde se debatia para respirar. Foi quando voltou o olhar para dentro, um pouco perdido, de coração aos pulos frenéticos, que viu o tecto ser nuvem carregada e mal teve tempo de se enfiar debaixo da secretária para se proteger da queda de abundante chuva.

Encolhido, abrigava-se como um miúdo pequeno num buraco, de uma chuva impiedosa que lhe vinha anunciar a sua própria consciência. Mal podia tirar de fora a cabeça, tal era a força da chuva. Tudo estava exposto, as fotos de família entre os papéis e documentos de trabalho espalhados pela secretária, o sobretudo deixado à porta no cabide.

O ar ensopava-se e o chão já reflectia na superfície arrepiada pelas gotas o céu negro que tinha tomado o lugar do tecto branco. A planta que morrera no parapeito da janela há alguns anos atrás, começou a erguer-se e as folhas murchas e mirradas abriram-se novamente, ali no limbo. O vidro da janela separava dois cenários opostos e presenciava pela primeira vez a troca espacial dos fenómenos. Lá fora, o mundo acordava para um sol e um sorriso que há muito a terra não via. Cá dentro, a chuva atirava-se ao chão e destruía a paz balofa dos gabinetes. O vaso, antigo e velho, e a planta a que dava morada, estavam mesmo ali, sempre estiveram ali. Mas antes tudo estava nos sítios errados. Agora acordara a velha planta. Um dia, quem sabe, dará flor.

Tuesday, April 03, 2007

a minha pátria não é um desenho no chão.

Friday, March 30, 2007

Profundidades do olhar...

Sentir sem ver...

Mentiras, mentiras, e... mais mentiras, frases e frases embrulhadas ás voltas com o meu próprio Cristo acabado de renascer das cinzas. Qual Fénix redentora?
Eu renasço a cada momento em que sorris, ou, em que penso que ela me satisfaz, nem toda a absolvição me impediria da ressurreição, honestamente não consigo deixar de me ouvir.
A ténue linha suicida que em jovial criatividade se alastra no conjunto de continuar, é uma arrasto de outras outras luas...
Doença?
Nostalgia?
Serei de carne e osso outra vez?
Não vivo palavras! Fico-me pelas minhas ideias!
Infelizes?
Palavras diluem-se na razão, não lhes dou significado para importar a sua insignificância.
Eu, por mim, caminho em oceanos como sobre a água!

Dinâmicas da Pedra!

A Pedra ainda sente...

Olho para mim, sou eu...
Olho para ti, és tu...
Tento olhar para nós... será que já não somos?

Wednesday, March 28, 2007

fascismo nunca mais

quantos são?
à sombra do crime,
profetas das desgraças,
filhos bastardos da nação.

quantos são?
os ferros com que nos querem prender,
os calabouços frios e as mordaças,
não passarão a nossa união.

sejam fascistas cabrões,
juntos em grandes reuniões,
mas nunca serão pátria,
nem povo, e não vos valem os galões.

sejam parasitas, vermes,
invertebrados nazis,
mas a barricada que vedes,
tem por detrás um povo que grita:
fascismo nunca mais!

Friday, March 23, 2007

içar a vela

sob o cacete,
vergámos as costas,
outros, não fui eu.

sob a ira,
recebemos a dor
mas temos a vitória de uma força
que não cedeu.

temporária é certo, que importa proteger
nunca a vitória é certa enquanto a história não crescer.

porém a luta é um mar
onde navega ao vento um povo jovem
"rumo à estrela polar".

Friday, March 02, 2007

bilingue

i am missing you.
em momentos absurdos.
em momentos vazios.
uma garrafa de whisky por metade
no degrau da frente
on my front step.
fazes-me falta.

fazes-me falta
quando me cai
um caracol para a testa
like your hair some times does;
quando vejo a lavanda
que roubámos, selvajaria
e penso em fazer-me à estrada
sem ti
i am missing you
when i laugh alone at the jokes
you would have laughed at with me.

quando a consciência de classe
is alive in me.

when i write or think bilingual poems
e nos lábios tenho a memória de traduções por fazer,
fazes-me falta.
when i smoke slowly quando os meus cigarros se fumam devagar.

tenho saudade
e tenho palavras
tempestades
palavras
tenho saudade.

i am so.
i am so \saudade\ missing you.

Wednesday, February 28, 2007

sentir

trágico o amor sem tragédia,
e a vida sem chamas,
triste o sorriso vazio,
indiferente chorar sem sofrer.

desapego, abandono...

desliga o sentimento.
ou deixa-te tomar pela dor.

Friday, February 23, 2007

a luta é o sentido, o tempo só corre por um caminho

vivemos tempos negros, é certo.
aves de agoiro pairam sobre os tristes,
porém nunca estivemos tão perto,
porque o tempo só corre num sentido.

e hoje tudo é mais duro que o que já viste,
os coveiros da tua luta que desistam,
que o cimento que nos une, mostra o destino
de um futuro construído sobre o passado vivido.

Thursday, February 08, 2007

Consciência de classe

Setembro. O sol cai a pique despertando gotas de suor. Dela pendem cabelos negros encostados ao longo da face de menina. Tez morena a sua e dos que por ali trabalham, mais ou menos vincada pelos sulcos da idade. Nem o calor, nem o vento abafado, nem a secura dão descanso aos corpos caminhantes entre as linhas de videira. Corta, apanha, encesta, carrega.

Corta. E enquanto isso, o cesto pesa no dorso. Pesa tanto mais quanto mais viagens poupam ao tractor. E têm de as poupar que há sempre alguém a ver. Como aqueles abutres, olhar de grifo, que se plantam como gárgulas petrificadas à espera da morte para o festim da necrofagia.

Apanha. E olha em redor a menina, o pai a seu lado carrega o triplo do que se lhe exige a ela. Tantas quantas as vezes porque multiplicamos a idade dela para obter a dele. Noutra linha, algumas mulheres de coragem escondida dos livros carregam exactamente o mesmo.

Encesta. E a menina, cujos cabelos continuam pendendo agarrados ao suor, embora sopre uma aragem fresca de norte, enche o seu cesto. Ainda antes de o pai encher o seu. Ninguém a vem ajudar a descarregar a cesta de vime. A tirá-la das costas marcadas, a empunhá-lo ao ombro e a incliná-lo para o reboque. Ninguém ajudou quando ela tombou ao chão a meio do exercício. Ninguém sequer lhe perguntou a idade. Afinal, havia por ali tantas outras iguais. Mas muitos tiveram vontade de ajudar. A reprimenda, no entanto, cairia rápida e dolorosa sobre a solidariedade.

Carrega. É ele quem acaba de encher o seu cesto. As suas costas estão negras de esforço. No entanto, o seu olhar é austero. Desloca-se firme para o reboque. Carrega o cesto de vime, um dos incontáveis que já carregara naquele dia. Cada um que passava, lembrava o próximo. Alegria e expectativa eram difíceis sentimentos naquela situação, mesmo quando cantavam. Sabiam que o trabalho que faziam não era para si, por isso as canções eram um paliativo e não uma manifestação de empenho e alegria. Ele volta à linha, junto à filha.

Como se os cânticos denunciassem a consciência de classe, a pequena perguntou ao pai com a naturalidade de uma criança: “porque apanhamos 5 cestos cada um, para que possamos levar 1 para casa?”

O olhar austero disparou, num ligeiro franzir de feições. Sem dúvida, as fracções de segundo após a pergunta foram o suficiente para alterar radicalmente o homem. Uma fúria, um medo, como um bicho em chamas contorcendo-se nos pulmões. A dor percorreu-lhe o corpo e alma quando se apercebeu que a mão forte e robusta do pai se tinha atirado ao seu pequeno rosto como uma arma de morte. Estremeceram-lhes os ossos, choraram-lhe os olhos, os lábios em sangue vibram em desarranjo e uma mão puxa o cabelo da fronte enquanto a outra a apoia agora caída no chão. Está caída, mas consciente. A próxima vez que se levantar fá-lo-á com o vigor de uma força que não tinha.

Monday, January 22, 2007

silvos de paz

doem-me as coisas que não fiz,
por saber a dor dos outros;
são calafrios, arrepios,
sussurros de insuficiência,
são chamas do que não se diz.

escondem-se verdades
em escombros de mentiras,
em palavras vendidas,
e a cada dia me ensaiam utopias
sobre os corpos da fome
de crianças sub-nutridas.

soam a segurança as balas,
as bombas tele-guiadas.
dizem-se pombas onde voam falcões,
mostram-nos mãos onde apontam canhões.
e morremos devagar,
os que comem sofrimento sem saber,
os que acordam mortos sem sonhar,
os que sonham acordados e ficam só a ver,
os que, a ver, perdem a força de lutar.

Tuesday, January 16, 2007

ar apagado

envolto em ti,
respiro ar apagado.

da história,
da vida,
do passado,
do futuro,
do olhar,
do abraço.

e os beijos que ficam por dar,
são sussurros, murmurados,
por um fôlego de mar.

Monday, January 15, 2007

permanência consciente (ou consciência permanente)

desprendi-me da noite ainda antes de o sol nascer.
ouvi cantar a madrugada e tremi,
como se o amanhã levasse os dias a que vivi abraçado.

mas antes de me despedir de ti, ao morrer,
agarrei-me a um vime debruçado,
e fez-se claro, não há futuro que apague o passado.

Friday, January 05, 2007

vagabundo

vagabundo entre as ruas
de mim próprio.

pulsam-me as veias de ilusão,
e olho o sol pela lupa do descontentamento.

bam-bam, bam-bam...
bate.

errante e vagabundo
saboreio as confissões da minha vida,
esfuziante até,
mas não moribundo.