Thursday, September 25, 2008

para que serve a poesia?

o poema não é verbo transitivo,
nem estado transitório,
não é complemento,
nem suplemento,
é essência e acessório,
núcleo e orbital,
periferia central.

inspiração e expiração,
é céu, inferno, purgatório,
tua mais sagrada oração,
teu canto expiatório
de pecados, indiferenças e virtudes.

é pedra fria, terra molhada
montanha de insuperáveis altitudes
vulcão incandescente,
amor ardente,
lugar comum. comum a toda a gente.

Tuesday, September 16, 2008

chorar porquê?

a árvore intensa relembra-me os dias que vivi ali. hoje, como antes, o calor cai sobre nós como uma explosão que em vez de momentânea se torna constante. na praça, as mesas dos velhos em redor suportam as pedras do dominó, consolo diário desta gente que, mesmo centenária, sabe que em casa não se fazem amigos, nem há tantos sorrisos. além disso, para eles, qualquer hora pode chamá-los à morada final.

voltei aqui sem saber os motivos de ter alguma vez partido. na verdade, não sei os motivos que agora me trazem de volta. só sei que na minha casa, moram apenas os restos de uma vida que já não tenho, uma cadeira de balouço parada no tempo com o esqueleto de minha mãe e uma mão cheia de traças no casaco que vestia o meu pai, ora feito em pó cinzento, desmantelado no sofá.

choraria, fosse eu outro. por ter deixado o tempo comer essas vidas na minha ausência. mas chorar não faria sentido ali, depois de tudo o que vi e de todo o lugar por onde andei.
conheci o inferno, o paraíso, as cidades, as aldeias, o gelo e os trópicos. conheci mulheres de todo o canto. conheci as lágrimas dos órfãos das guerras, conheci as espadas trespassando homens. conheci os horrores. conheci os monstros do mar e das montanhas, as éguas e as suas amazonas, os centauros diabólicos das florestas e os gnomos das grutas escuras do norte.

só não conheci o amor. esse estava ali no pó cinzento de meu pai e no esqueleto da minha mãe. chorar porquê?

escuro

tuas palavras acesas
como pegadas incandescentes
no manto escuro da floresta
apontam, entre folhagens,
o caminho que sigo na noite densa.

Friday, September 12, 2008

trevas II

quando acordei já sentia na boca a sede de sangue. aquele odor férreo que nos cobre a língua, como a fome. afinal de contas era apenas mais um dia de trabalho e por isso tinha deixado os punhais preparados na noite anterior. lavados e afiados numa pedra que carrego para onde vá.

tirei de dentro da sacola uma peça de pão duro e enchi meia taça de vinho acre quase quente. antes de matar, precisava de comer. claro que a pestilência da rua, mesmo de madrugada, penetrava o meu quarto com a mesma intensidade que os primeiros raios oblíquos do sol o faziam. fétido era o ar das manhãs porque carregava a podridão da noite. respirava-se ainda o vómito dos velhos pedintes, o suor dos vagabundos, o calor das mantas sujas nos bordéis e em algumas esquinas, mas pior que tudo isso, respirava-se a sujidade das almas dos homens e das mulheres que vivos, pareciam mortos.

comi o pão, bebi devagar o vinho. apesar dos odores, apraz-me saborear o a taça de alumínio vertendo aquele rubro néctar. cobri a cabeça com o capuz verde escuro sujo, limpei o sangue das luvas e atei ao dorso os punhais afiados. é bom ver que na sua superfície sou mais bonito que em qualquer espelho polido, porque eles toleram as minhas cicatrizes e, mais que isso, compreendem-nas como suas.

com o capuz desci as escadas e já na praça principal caminhei pelo beco até à igreja, esse templo ubíquo e maldito, antro das ratazanas desta época. aí me prostrei perante as paredes nuas de pedra poderosa, em respeito por todos quanto ali procuravam o sossego escondido e para não levantar suspeitas de quem por ali procurava o perdão que não obtinha de si próprio.

aos 28 anos tenho esta capacidade de me fazer passar despercebido, principalmente no escuro. e que melhor lugar que a igreja? subi à torre e daí saltei para o telhado castanho da casa do lado, à distância de uma viela onde mal caberia um cão. deixei em casa a besta, a zarabatana e o veneno. hoje trago apenas os punhais e serão eles a minha mão, ou a mão de deus para quem assim creia.

ainda ouvi a conversa na esquina por baixo de mim: dizia ele que geria a cidade com transparência, que devia fidelidade ao povo, mais que ao reino e que à nobreza. dizia para quem quisesse ouvir. e à sua volta juntava-se a orla mendicante do costume, os coitados, os trastes e os moribundos. curiosamente, já de madrugada o anafado agente real, assim ordenado por vontade do benevolente rei, mostrava a gordura das belas costoletas que acabara de trincar. hábito repelente esse de não limpar a beiça depois da refeição a que se alia sempre o de não lavar as mãos.

pouco tinha eu que me preocupar com política, ou com as conversas do homem ridículo. falta-me receber metade do pagamento por este serviço e só a receberei depois de terminado, o serviço entenda-se. que é o mesmo que dizer, depois de terminado o agente real. e o odor do sangue porco do homem subia até mim no topo do telhado e aguçava-me o olhar, como quando o peregrino falcão foca a presa no solo e se precipita em vôo picado sobre o rato, precipitar-me-ia agora sobre o grande mamífero. um punhal entre as costelas e outro cortando as veias palpitantes do pescoço. jorrando o sangue, novamente minhas luvas se tingiram. e três ou quatro à sua volta se espantaram, outros tantos cobriram o corpo com as mãos procurando riquezas escondidas. ninguém tentou sequer deter-me. mais à frente, depois de dobrada a esquina, tirei o capuz para as costas, deixei o sol mostrar a face insuspeita e guardei novamente os punhais depois de os sacudir. terminado o agente real, agora guardo comigo a prova de sua morte: a sacola dos subornos que ele trazia no bolso.


sem saber porquê, escrevo sobre assassinatos na idade média. este é o segundo assassinato narrado. depois do primeiro.