Thursday, March 13, 2008

(ab)surdo

mais um dia passava, frenético mas lentamente. lá fora os ruídos da rua, dos carros apressados, das palavras caóticas pela chuva metódica não chegavam aos meus ouvidos. o meu ruído era demasiado intenso. sobre ele nada poderia passar. as palavras da mulher que me limpou a secretária, as palavras do homem gordo que me dava ordens sentado, as palavras do colega que gabava as notas do filho, todas me passavam inexoravelmente sem provocar nenhuma vibração. todas se misturavam com o meu ruído, as minhas ilusões.

mais um dia, e o fumo de som que me invadia, tomava novamente conta de mim. pior, tomava mais e mais da minha alma. algo como o ranger constante de uma porta antiga. era esse o som da minha ilusão.

mas do ruído do meu próprio ser crescia a impossibilidade de ultrapassar as minhas entranhas. tudo à volta é o meu som. na secretária, pousados os lápis cansados de riscar e rabiscar a distracção. lá fora as árvores despidas são quem me reflecte. os meus únicos espelhos.

(...)

hoje à noite escrevo a nota em que me repouso. uma carta para ninguém, mas finalmente silenciosa.

"matei-me porque o silêncio é o meu único repouso. matei-me porque não consigo viver ao som da campainha que toca o som da minha vida."

ali mesmo no funeral, o colega do filho com boas notas diz para o homem do lado que não compreende, que nunca ouvira tal campainha mesmo trabalhando tão perto de mim. eu estranho porque aquele ranger soava tão alto - afinal o meu colega era surdo.

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