Friday, December 09, 2005

capricho

Subia as escadas em passos lentos. Sob as pontas dos meus pés sentia a cadência da escadaria de pedra gasta. Era ali que fazia a espera muitas vezes, a espera da noite. Porque a noite é uma coisa, o entardecer é outra. E o pior é sempre aquele momento entre o fim do dia e o princípio da noite, a que alguns teimam em chamar hora de jantar, esse hiato de vida. É esse hiato que me deixa pendurado sobre mim próprio, muitas vezes chutando os minutos com os pensamentos. Subia as escadas em passadas lentas, deixando correr esse tempo perdido para que não permaneça. A ascensão compassada já me trazia o suor, aquele suor trémulo de quem sabe que vai entrar no bar. Mais especificamente, vai chegar-se ao balcão da Capricho Setubalense, centenária sociedade musical, colectividade de esperanças e desarrumos, de festas e de tristes jogos de cartas.
É com esse suor que tanto gela como aquece o céu da boca que subo as escadas, passando as portadas de pedra, frias, por isso mesmo. É com o sabor prévio da amêndoa amarga que lhe imagino já as ondas de licor escorrendo lentamente pelas paredes do pequenos copo, minha ampulheta nos hiatos de tempo. Já senti o primeiro trago e ainda não cheguei lá acima. As paredes passam com as mãos no corrimão de pedra picada que acompanha a escadaria. É exactamente no momento em que devo avistar o chão por debaixo dos lustres antigos, que a vejo. Ela tinha-me dito que passaria por ali um destes dias, não podia adivinhar que seria aquele, nem saberia que poderia ser exactamente à hora que não é dia nem noite. Mas foi exactamente à hora em que nada acontece. A hora da espera que os outros saiam para beber as alegres canecas nocturnas, a hora suspensa.
A hora em que a música ainda é a que nos cruza as visões, sem ter necessariamente um som que a sustente.
Não falou, não falei. Um abraço desenhou-se no salão de entrada, sobre o soalho de madeira e os seus ruídos. Um abraço que estava preso nos corpos, soltava-se por eles próprios e demorava-se enquanto nasciam beijos que subiam à boca. Quem visse, poderia dizer que se ia dançar. Mas era uma dança que ninguém podia ver. Secreta, onde o mais forte era exactamente o que não se via. Era a raiz que desejei ter pelo chão até à terra, era a força com que queria abraçar e sentir-me abraçado, era o beijo solto que em breve se despegaria dos meus lábios. Mais escadas mesmo à nossa frente, à esquerda o bar continuava a acenar cheiros e cores. As escadas impuseram-se. O seu tom escuro de madeira velha? O ranger que sabíamos vir a ouvir? Enlançados pelos braços, dois passos chegaram-nos à escadaria superior. Olhares trocados. Os olhos dela eram espelhos glaciares onde se reflectia nada mais nada menos que a minha alma em desejo. Cada degrau era uma batida forte, um anúncio do que estava escondido e ia ser descoberto. Cada degrau era uma força contra o peito, era uma mão perdida que lhe tocava o cotovelo. A escada bifurca-se, intuitivamente sobe-se pela esquerda, ali já ninguém nos vê. A porta que aparece é de madeira, da cor das escadas. Os ruídos não calam o beijo, a mão não deixa de subir acima do cotovelo desenhando-lhe o corpo com a ponta dos dedos. Há um corpo perfeito que ela habita. Não foi mais preciso abrir os olhos para sentir as pétalas que caíram sobre nós. O último beijo foi no traço sublime que une o seio esquerdo ao peito pelo lado de fora do corpo, descoberto pelo seu braço levantado. Sair? Perguntei-lhe. Não… claro está.
Li-a mais tarde numa carta: “amanhã na murada de Alcochete junto ao Tejo, beijo”.
Ela não apareceu. Fui sentar-me na esplanada, com café.

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