É com esse suor que tanto gela como aquece o céu da boca que subo as escadas, passando as portadas de pedra, frias, por isso mesmo. É com o sabor prévio da amêndoa amarga que lhe imagino já as ondas de licor escorrendo lentamente pelas paredes do pequenos copo, minha ampulheta nos hiatos de tempo. Já senti o primeiro trago e ainda não cheguei lá acima. As paredes passam com as mãos no corrimão de pedra picada que acompanha a escadaria. É exactamente no momento em que devo avistar o chão por debaixo dos lustres antigos, que a vejo. Ela tinha-me dito que passaria por ali um destes dias, não podia adivinhar que seria aquele, nem saberia que poderia ser exactamente à hora que não é dia nem noite. Mas foi exactamente à hora em que nada acontece. A hora da espera que os outros saiam para beber as alegres canecas nocturnas, a hora suspensa.
A hora em que a música ainda é a que nos cruza as visões, sem ter necessariamente um som que a sustente.

Não falou, não falei. Um abraço desenhou-se no salão de entrada, sobre o soalho de madeira e os seus ruídos. Um abraço que estava preso nos corpos, soltava-se por eles próprios e demorava-se enquanto nasciam beijos que subiam à boca. Quem visse, poderia dizer que se ia dançar. Mas era uma dança que ninguém podia ver. Secreta, onde o mais forte era exactamente o que não se via. Era a raiz que desejei ter pelo chão até à terra, era a força com que queria abraçar e sentir-me abraçado, era o beijo solto que em breve se despegaria dos meus lábios. Mais escadas mesmo à nossa frente, à esquerda o bar continuava a acenar cheiros e cores. As escadas impuseram-se. O seu tom escuro de madeira velha? O ranger que sabíamos vir a ouvir? Enlançados pelos braços, dois passos chegaram-nos à escadaria superior. Olhares trocados. Os olhos dela eram espelhos glaciares onde se reflectia nada mais nada menos que a minha alma em desejo. Cada degrau era uma batida forte, um anúncio do que estava escondido e ia ser descoberto. Cada degrau era uma força contra o peito, era uma mão perdida que lhe tocava o cotovelo. A escada bifurca-se, intuitivamente sobe-se pela esquerda, ali já ninguém nos vê. A porta que aparece é de madeira, da cor das escadas. Os ruídos não calam o beijo, a mão não deixa de subir acima do cotovelo desenhando-lhe o corpo com a ponta dos dedos. Há um corpo perfeito que ela habita. Não foi mais preciso abrir os olhos para sentir as pétalas que caíram sobre nós. O último beijo foi no traço sublime que une o seio esquerdo ao peito pelo lado de fora do corpo, descoberto pelo seu braço levantado. Sair? Perguntei-lhe. Não… claro está.
Li-a mais tarde numa carta: “amanhã na murada de Alcochete junto ao Tejo, beijo”.
Ela não apareceu. Fui sentar-me na esplanada, com café.
No comments:
Post a Comment