Wednesday, February 22, 2006

só existo aqui?


através do pára-brisas embaciado, as luzes do carro da frente eram apenas duas manchas vermelhas difusas. o trânsito estava caótico e a rádio, numa frequência que ouvia bastante frequentemente, repetia um programa que tinha passado duas semanas atrás. antes de entrar no carro, a chuva tinha-o feito correr logo de manhã. chapéu de chuva era algo que, pura e simplesmente se recusava a usar.

a ponte, infelizmente, não lhe pareceu deserta, nem lisboa havia partido para parte incerta. tudo estava bem ali, diante de si. era a sua cabeça que queria partir para parte incerta, longe. o dia já se adivinhava longo. igual a tantos outros em que, qual funcionário cansado, as tarefas lhe pareciam bocejos.

o trabalho foi igual à manhã. no cubículo sentia-se longe de casa. os lápis não lhe inspiravam os desenhos que fazia quando ali chegou depois dos hábitos que ganhou nas visitas ao jardim botânico. ali não havia inspiração. as pessoas sorriam apenas como reflexo ao som de um outro olhar que tilintava como uma pequena campainha. o mundo estava ali colapsado. o conforto do livro à beira da cama agora não existia.

um aperto, quase um suor frio, subiu-lhe ao peito. a vida poderia estar resumida àquilo. só existir aquele mundo pequeno. Levantou-se da cadeira, ainda olhou à sua volta... tudo normal. pegou um lápis entre os dedos, gastou-lhe a ponta afiada num papel velho que ali estava. parou. apontou a um papel branco. traçou uma flor. uma pequena flor. então o aperto agigantou-se. o peito apertou-se-lhe de tal maneira que não resistiu. não chegou sequer a sombrear o interior das linhas que desenhavam uma pequena e comum flor. caminhou a passo apressado pelo corredor, desapertando a gravata sufocante.

Correu até à porta após sair do elevador que o levava ao piso térreo. lá fora, continuava um dia triste, com carros quase parados e pessoas em fila para passarem uma passadeira. os chapéus de chuva negros amontoados causavam uma sensação curiosa. ali debaixo era como estar sob uma coberta. atravessou a estrada a correr e seguiu dois quarteirões sob as gotas que iam enfraquecendo. aos portões enferrujados do jardim, não ligou. mas assim que pisou o chão de terra e gravilha, sentiu o aperto que já lhe afectava o pescoço, descer. a intensidade do espaço cortara-lhe a força da ansiedade. afinal, o jardim continuava ali. o vento soprava-lhe na face e os olhos semicerraram-se com uma alegria infantil. o cabelo ondulava lento como se estivesse combinado com as flores que, inacreditavelmente, continuavam ali. largando as suas pétalas brancas ao chão, como neve. E, no fim do dia, o livro continuava à beira da sua cama.

No comments: