Thursday, February 23, 2006

desenhar um poema sem papel

a falésia era um tributo. uma homenagem dos mares e da terra aos deuses. só isso explicaria a sua incomensurável beleza. nascida da neblina que as próprias ondas criavam, estendia-se desenhada em pedra esculpida até uma cobertura verde que lhe revestia o topo, expondo a sua força e a sua fragilidade. do cimo, as ondas moviam-se lentamente e a espuma branca parecia quase imóvel. o ventre da escarpa impunha-se, mostrando altivo a sua grandeza.

ali do cimo, os seus pés eram o começo de uma descida alucinante. ali do cimo, a falésia ostentava a beleza que ninguém lhe podia tirar. ali do cimo, no entanto, a inevitável imagem de precipício sobrepôs-se. a queda. a vertigem. o toque fatal e despedaçante nas pedras que lá em baixo abraçam a onda. a falésia dual. ela não pode deixar de dar um pequeno passo atrás, segurando-se à ideia de que a terra poderia aí ser mais firme. ali, a vertigem desaparecera... o precípicio desfez-se... no entanto, a força da escarpa também dissipou.

a imagem da queda em velocidade acelerada, vertical. a imagem do seu corpo frágil de mulher a sentir numa fracção de segundo a pedra dura cruzou-lhe o pensamento como um relâmpago. mas o suícidio não a seduzia, nem transportava consigo qualquer razão para tirar a sua própria vida.

deixou o mar, retirou-se naquela tarde de primavera verdejante. a caminho de casa ficava-lhe a agradável mas curta viagem de comboio. sentou-se no banco, frente a um homem que lia um entediante jornal desportivo, mas que, a julgar pela aparência, há muito tempo que não sabia o que era praticar desporto. a carruagem ia praticamente vazia. era dia de descanso e as pessoas não andam de comboio nos dias de descanso.

quase vazia. a viagem era quase curta. mas no espaço da carruagem cabia o rapaz do banco do fundo. no tempo que durou couberam os olhares trocados. o último olhar foi uma vida, ele desenhou-lhe um poema nunca escrito. como se entre eles num vidro se traçassem os mais belos versos do Homem.

estação. ela saiu. o vidro real da janela do comboio agora impunha-se entre eles, evidenciando a fatalidade de que não se conheceriam.

ela pousou a bolsa quando se sentou na esplanada do café, tirou o seu moleskine. escreveu.
não existem precípicios, tenho dúvidas quanto às falésias.

1 comment:

Anonymous said...

"ali do cimo, os seus pés eram o começo de uma descida alucinante."

Esta é uma situação que realmente enfeitiça, parece que nos suga a atenção... ter lucidez para dar um passo atrás é sempre um alívo...

Faz mais contos.