Thursday, February 08, 2007

Consciência de classe

Setembro. O sol cai a pique despertando gotas de suor. Dela pendem cabelos negros encostados ao longo da face de menina. Tez morena a sua e dos que por ali trabalham, mais ou menos vincada pelos sulcos da idade. Nem o calor, nem o vento abafado, nem a secura dão descanso aos corpos caminhantes entre as linhas de videira. Corta, apanha, encesta, carrega.

Corta. E enquanto isso, o cesto pesa no dorso. Pesa tanto mais quanto mais viagens poupam ao tractor. E têm de as poupar que há sempre alguém a ver. Como aqueles abutres, olhar de grifo, que se plantam como gárgulas petrificadas à espera da morte para o festim da necrofagia.

Apanha. E olha em redor a menina, o pai a seu lado carrega o triplo do que se lhe exige a ela. Tantas quantas as vezes porque multiplicamos a idade dela para obter a dele. Noutra linha, algumas mulheres de coragem escondida dos livros carregam exactamente o mesmo.

Encesta. E a menina, cujos cabelos continuam pendendo agarrados ao suor, embora sopre uma aragem fresca de norte, enche o seu cesto. Ainda antes de o pai encher o seu. Ninguém a vem ajudar a descarregar a cesta de vime. A tirá-la das costas marcadas, a empunhá-lo ao ombro e a incliná-lo para o reboque. Ninguém ajudou quando ela tombou ao chão a meio do exercício. Ninguém sequer lhe perguntou a idade. Afinal, havia por ali tantas outras iguais. Mas muitos tiveram vontade de ajudar. A reprimenda, no entanto, cairia rápida e dolorosa sobre a solidariedade.

Carrega. É ele quem acaba de encher o seu cesto. As suas costas estão negras de esforço. No entanto, o seu olhar é austero. Desloca-se firme para o reboque. Carrega o cesto de vime, um dos incontáveis que já carregara naquele dia. Cada um que passava, lembrava o próximo. Alegria e expectativa eram difíceis sentimentos naquela situação, mesmo quando cantavam. Sabiam que o trabalho que faziam não era para si, por isso as canções eram um paliativo e não uma manifestação de empenho e alegria. Ele volta à linha, junto à filha.

Como se os cânticos denunciassem a consciência de classe, a pequena perguntou ao pai com a naturalidade de uma criança: “porque apanhamos 5 cestos cada um, para que possamos levar 1 para casa?”

O olhar austero disparou, num ligeiro franzir de feições. Sem dúvida, as fracções de segundo após a pergunta foram o suficiente para alterar radicalmente o homem. Uma fúria, um medo, como um bicho em chamas contorcendo-se nos pulmões. A dor percorreu-lhe o corpo e alma quando se apercebeu que a mão forte e robusta do pai se tinha atirado ao seu pequeno rosto como uma arma de morte. Estremeceram-lhes os ossos, choraram-lhe os olhos, os lábios em sangue vibram em desarranjo e uma mão puxa o cabelo da fronte enquanto a outra a apoia agora caída no chão. Está caída, mas consciente. A próxima vez que se levantar fá-lo-á com o vigor de uma força que não tinha.

2 comments:

Anonymous said...

:(

Anonymous said...

Muito bem construído o problema gravissimo da exploração.

O esforço na mão calosa
Da menina que suor deita fora
Enche a boca gulosa,
Do patrão que a explora