Wednesday, December 17, 2008

natal

eu estava sentado sobre a viga e de mim ao chão ia a altura de uma vertigem. já o frio do inverno me enregelava as mãos sob as luvas de couro, furadas. o trabalho não se dava a feriados, mesmo próximo da quadra do nascimento do menino jesus, que a fome lá em casa não vive de enfeites, nem tampouco de caruma se fazem marmitas para almoçar.

"Sentado sobre a viga, ali estava
Mãos geladas, o frio era de rachar
E eu um homem que trabalhava
Para a fome dos meus poder matar"


frio. estava frio. o vento soprava por mim, passando pelas costas um rubor gelado, mas também não havia tempo para doenças ou espirros, que passar sem trabalhar é luxo a que eu, como os que aqui estão a meu lado, não se podem dar. há que juntar as forças, mesmo quando doem as pernas de manhã, e levantar os braços à construção. o quente da casa, da mulher e dos miúdos, é deixado onde estava logo antes do sol raiar. é assim o inverno. é assim o natal.

"A doença é esquecida
Não há lugar ao conforto do lar
Só a força enraivecida

De mais um dia a trabalhar"

sentado sobre a viga, olhando a grua a parar, percebi que a pausa chegava. finalmente, que se há coisa que não chega rápido é a pausa, muita embora rápida passe, tão rápida como o gole fresco da cerveja que paramos para desfrutar. abro a marmita, chegam perto os colegas. nem deixamos a viga. continuamos acima do olhar dos que passam nas compras. alguém tem de construir as lojas, pois.

"Chega a hora da pausa, bem-vinda
Um gole de cerveja merecido
E um abrir e fechar de olhos que finda
Um almoço pelo frio arrefecido"


abrem-se as caixas, tiram-se as garrafas, enche de pão a boca. o saca-rolhas passa de mão em mão. mesmo a meu lado passa um assobio, quase despercebido no meio do vento frio. um cabo de aço solta-se e dispara bem entre mim e o camarada do lado. salvámo-nos por pouco, não foi a primeira vez. infelizmente a cerveja dele não sobreviveu e vêmo-la precipitar-se entregue à gravidade.

"O vinho aquece, o pão mata
A fome faminta, agravada
E nisto um cabo que se desata
E passa entre mim e meu camarada"

não faz mal, que se arranja um copo que se enche, fraterno, de uma gota de cada um. e os outros quatro deitam uma pinga, ninguém deu pela falta. dir-se-ia "que bonito o espírito do natal", mas nenhum de nós se lembrou do menino jesus.

"Mas de repente fez-se luz
Enchemos o copo que se derramou
Mas do menino Jesus
Nenhum de nós se lembrou"



agradecimento: obrigado ao Miguel Beirão (da balada da liberdade) pelas quadras.

4 comments:

Maria said...

Belíssimo!

Um abraço

Maria said...

Voltei para te reler.
E senti um arrepio...

Anonymous said...

Ahahah! Bellissimo!

Mas previsível... lol!

Cá pa mim tás é chateado por ñ teres prendinhas...

:P

Sérgio Ribeiro said...

Que belo (e verdadeiro) "esse bonito espírito de natal" que nascia antes de haver natais, que amadurecerá com a luta dos homens solidários, sentados em cima da viga, pés suspensos no vazio, partilhando cerveja e o que for.
Obrigado pelo que escreveste e um abraço camarada. Vamos a 2009!