Friday, June 30, 2006

a teus olhos

sou mais bela
mais perfeita

nos teus olhos não há cicatriz ou ruga ou nódoa negra
que me magoe a pele.

a teus olhos só há a leveza da mão
no meu ombro

só há o contorno redondo
da anca
o vale profundo da cintura
a longuez dos dedos
dos braços
da perna exposta.

só há a proximidade dos lábios



sempre longe demais.

Thursday, June 29, 2006

por sobre o mar

longe…
é a palavra da distância,
ainda assim desejo, sobre o mar,
poder tocar o fio do horizonte
onde os teus contornos de sombra
são a mais bela justificação do sol.

Wednesday, June 28, 2006

Fotografia II

de negro, curvada e de lentes fundas, os anos cravavam-se-lhe irrevogavelmente na pele. pela cor, qual mortalha dos pés à cabeça, o marido havia partido. encostava-se numa bengala com o seu braço pequeno, e as pernas serviam-lhe apenas para não cair. andar é manifestamente uma tarefa de facilidade relativa.

pequena, resmungava palavras incompreensíveis enquanto se arrastava lentamente até à base da escada da bica. lisboa tem destes cenários que nos fazem conseguir respirá-la. a bica. a olhar para cima, a calçada estendia-se umas centenas de metros numa subida de passo íngreme e difícil. o elevador da bica, esse, avariado estava, encostado a um canto, com tristeza latente na chapa centenária.

mas ela tinha de subir. não conseguiria porém fazê-lo.
encostou-se na esquina pequena que cruza a calçada com o largo onde ainda descansavam os últimos enfeites dos santos. ali, mesmo onde habitualmente poderia simplesmente entrar no elevador. respirou, duas sôfregas respirações não a deixaram falar com quem ali estava, nem pedir ajuda. meteu-se ao caminho, pisou um degrau. escorregou, ia caindo. na janela uma senhora queixava-se das grades que ali tinham posto, bicudas, aguçadas, que há dezenas de anos tinham levado o dedo ao seu filho que ali brincava.

de negro, envelhecida, de olhos fundos mais que as lentes, subiu a calçada com um trabalhador da carris pela mão, fora de serviço.

Monday, June 26, 2006

solidariedade da força

quando te dizem que não podes,
que o teu olhar não deve ir ao horizonte,
quando te dizem que cales,
que não sintas o chicote,

não sabem que
sentes.

sentes que podes,
que o horizonte é teu, quando quiseres,
que o teu grito é mudo, mas é duro
que a dor não é tua, é de todos.

lonjura

se visses o mar hoje...
hoje o mar eras tu.

e por cima um céu que se lhe reflecte,
abraçava-me.

Tuesday, June 20, 2006

a cidade, a outra face da vida

a cidade é a poça de água do inverno
é a janela partida,
o cheiro sujo da chaminé,
é o cozido à quinta feira,
e o autocarro aqui ao pé.
a cidade são os sorrisos das mulheres,
e o praguejar caduco dos que cospem impropérios,
a cidade é um homem em tronco nu,
e a gravata ao lado, passeando.
a cidade é a noite clara,
o gin derramado
e o cheiro do tabaco entranhado,
a cidade é acordar ao lado de um peito nu sem me lembrar,
são as horas longe do mar,
do vento e da praia,
a cidade é o frenesim
quando meditar não é o mesmo que sossegar.

Friday, June 16, 2006

m.

dói-me a tua morte anunciada.
os pulmões pesados,
o ar que dificilmente
te alimenta.

dói-me a saudade súbita
do sorriso nos lábios com que ano apos ano
te aproximei o cinzeiro ao queixo
para evitar
a cinza que sujasse os papeis
os livros
os filmes
o trabalho
os pulmões.

aqula vez em que
esqucido dos impropérios
flirtaste comigo.
o vestido vermelho a roçar-me a pele
e tu subitamente bem disposto, amigo

dói-me a saudade súbita
da distancia
dos cinzeiros sujos, cheios de vida
dos sorrisos desproporcionados, inusitados, inesperados

do livro que me mandaste
como tu, súbito.

dos cinzeiros
dos livros
dos risos
de ti.


nao morras ainda.
vou a caminho.

Wednesday, June 14, 2006

egoísmo

são apenas os reflexos do nossos olhos
o que podemos olhar,
mas aos outros podemos ver as almas,
assim o espelho à nossa frente
se abata sem estilhaçar.

Thursday, June 08, 2006

idade dos sonhos

lá fora caíam as últimas folhas de outono e o chão cobria-se de vermelhos. era um caminho estreito o que levava àquela casa, orlado pelas árvores que um dia alguém plantou, criando, como deus, um quadro da cor da nossa respiração quando sorrimos. pela janela, os olhos pousavam sobre o chão daquele ladrilhado claro, enquanto a alma descansava sobre si própria, como se por momentos pudesse extinguir-se. lá fora, no fim do caminho, junto à estrada, bem longe, passava a pé a mulher da vida dele.

Saturday, June 03, 2006

Verdade


Deste mundo não levo nada senão a humilhação de ter acreditado no Amor. Todas as matérias se reduzem a pó quando equiparadas a semelhante aterro. Ou terror. A essência do ser humano não existe em detrimento de outro espécime, mas sim para ter uma vida individual e própria, condicionada apenas pela assumpção de uma liberdade plena e relativa. Esse tipo de emoção facilmente se aliena com argumentos lógicos e cientificamente comprovados. Descartes sabia-o, todavia isso afasta-lo-ia da imortalidade. Os horizontes recuam a cada passo que damos em direcção ao Conhecimento e à Verdade, à nossa verdade, e não obstante a indiferença que nos caracteriza, somos também cruéis ao rejeitar a clarividência com que os factos se nos apresentam...indubitáveis! E assenta-se toda uma estrutura social em fundamentos auto-destrutivos, geradora de embriões de paixões assolapadas e estórias acompanhadas de prémios literários! Protegendo-se uma espécie destruidora dos outros e de si mesma. É paradoxal, se a isto somarmos a Inteligência e a Racionalidade com que vimos armados...Sejamos guerreiros, iluminemos o caminho da libertação, remendando a genuína causa de todo este teatro universal! Só nos resta um suicídio ininteligível...portanto, vivamos nesta doce inércia de acreditar... que não fomos abrangidos pela condenação "sísifica" de sermos o Princípio e o Fim.