Wednesday, December 28, 2005

desenhos feitos no ar a carvão

são os contornos das palavras
que me habitam, difusos
aí nascem as aves de mim,
aí se plantam os meus rios.

são desenhos feitos no ar a carvão
(poemas escritos no meu corpo com as tintas da minha alma)
são um peso novo, desconhecido
são um mapa do que sou, sem mostrar onde estou,
são a minha vida numa gota de chuva por cair.

Sunday, December 25, 2005

noite

há dias, há instantes, momentos,
tempos em que queremos apenas
ouvir cantar o sopro dos ventos.

Thursday, December 22, 2005

Inércia


Desvio o olhar do relógio. Na verdade, o tempo parou esta manhã.
Quando foste embora. Quando me deixaste entregue a mim mesma. Dizem que na ausência tudo esmorece, e tu teimas em provar-me o contrário, em torturar-me com golpes sanguinários de saudade e desejo. Paradoxalmente, esta seria a fase que em ti encontraria diferenças incontornáveis, uma qualquer justificação para o meu medo e que te faria partir sem deixar rasto; no entanto, quantas mais são as noites ao teu lado, mais gosto de ti, mais povoas o meu pensamento.
És um homem sensível, gosto da tua fragilidade que é também a minha. Gosto de poder mostrar-me sem rodeios, ser eu e não alguém de quem gostarias mais...e ainda assim, saber que não te importas. Veres-me como sou e abraçares-me...
Volto a espreitar os ponteiros do relógio. Julgo que se moveram, à rebelia da minha inércia. Este tempo é profícuo em coragem, porém estaticamente tentador. E não pode ser diferente, é tempo de Amor!

Tuesday, December 20, 2005

há rumos sem faróis

Alcança-me o corpo por favor
Desenha-me em chamas junto às constelações
Beija-me o peito da alma ao som do piano
Fecha-me os olhos das preocupações

Sopra-me vida ao ouvido
Arrepia-me como um sismo só meu
Acende-me com um só suspiro
Navega-me, o meu mar é teu

Alcança-me o copo cheio de ti
Desenha-me na areia solta
Beija-me os lábios com frutos
Fecha-me em ti, aberto sorriso

Sopra-me um vento quente, em descanso
Arrepia-me subindo vertical o corpo deitado
Acende-me uma estrela no tecto branco
Navega-me, não preciso farol aceso nem apagado

Friday, December 16, 2005

I, II, III... revolução (nasce, olha, cresce, revolta-te)

I

no dia em que nasceste
não se acenderam chamas no céu,
não se desenharam por aí
sorrisos em cada esquina,
no dia em que nasceste
as montanhas não rugiram
não se riscaram cores celestes
nem as pétalas abriram
em tons diferentes,
no dia em que nasceste
não se levantaram mãos
não caíram lágrimas de alegria
não nos olhámos como irmãos
era apenas mais um dia
no dia em que nasceste
a história não escreveu mais livros
ninguém dançou em rodas de mãos dadas
nem decorou praças nem ruas
nesse dia não se abriram por ti garrafas de vinho

II

os olhos que mais tarde abriste
não viram mais que o que existia
não viram mundos dos livros
a vida era a verdade
e a verdade não tinha chamas no céu,
sorrisos, montanhas floridas,
não tinha arcos pintados,
nem flores de diferentes cores,
não havia mãos livres levantadas, nem lágrimas de alegria,
irmãos, só nascidos do ventre da mesma mãe,
não se dançavam rodas alegres,
nem as ruas tinham a cor dos campos em flor,
o vinho só na cave e mesa do teu patrão
a história era apenas o processo do teu próprio desaparecimento.
a verdade era a tua extinção.

III

desenganem-se os donos da resignação
os balofos generais da exploração
desiludam-se os necrófagos,
parasitas e outros mestres da ilusão.
que a tua vida não estava escrita
nas páginas da sua ambição,
nem podiam conter-te as forças
nem as raízes da tua libertação
não podiam cortar-te o sopro
de vida colectiva em tua respiração.

IV

eras apenas tu,
herói das memórias por criar
novo, em todo o teu viver,
criar agora é tarefa tua,
deixaste deus no seu lugar.
e o vinho, e as uvas, e as sementes das uvas
e a terra onde plantas as sementes, e a cave e a mesa,
e as ruas alegres, as danças ao luar,
as lágrimas felizes, as mãos levantadas, livres, cerradas,
as flores, os céus riscados, as estrelas,
são agora o papel onde escreves a tua história
com tintas de vitória.
e irmãos, todos, todos do ventre de uma terra libertada
nossa mãe.

Friday, December 09, 2005

capricho

Subia as escadas em passos lentos. Sob as pontas dos meus pés sentia a cadência da escadaria de pedra gasta. Era ali que fazia a espera muitas vezes, a espera da noite. Porque a noite é uma coisa, o entardecer é outra. E o pior é sempre aquele momento entre o fim do dia e o princípio da noite, a que alguns teimam em chamar hora de jantar, esse hiato de vida. É esse hiato que me deixa pendurado sobre mim próprio, muitas vezes chutando os minutos com os pensamentos. Subia as escadas em passadas lentas, deixando correr esse tempo perdido para que não permaneça. A ascensão compassada já me trazia o suor, aquele suor trémulo de quem sabe que vai entrar no bar. Mais especificamente, vai chegar-se ao balcão da Capricho Setubalense, centenária sociedade musical, colectividade de esperanças e desarrumos, de festas e de tristes jogos de cartas.
É com esse suor que tanto gela como aquece o céu da boca que subo as escadas, passando as portadas de pedra, frias, por isso mesmo. É com o sabor prévio da amêndoa amarga que lhe imagino já as ondas de licor escorrendo lentamente pelas paredes do pequenos copo, minha ampulheta nos hiatos de tempo. Já senti o primeiro trago e ainda não cheguei lá acima. As paredes passam com as mãos no corrimão de pedra picada que acompanha a escadaria. É exactamente no momento em que devo avistar o chão por debaixo dos lustres antigos, que a vejo. Ela tinha-me dito que passaria por ali um destes dias, não podia adivinhar que seria aquele, nem saberia que poderia ser exactamente à hora que não é dia nem noite. Mas foi exactamente à hora em que nada acontece. A hora da espera que os outros saiam para beber as alegres canecas nocturnas, a hora suspensa.
A hora em que a música ainda é a que nos cruza as visões, sem ter necessariamente um som que a sustente.
Não falou, não falei. Um abraço desenhou-se no salão de entrada, sobre o soalho de madeira e os seus ruídos. Um abraço que estava preso nos corpos, soltava-se por eles próprios e demorava-se enquanto nasciam beijos que subiam à boca. Quem visse, poderia dizer que se ia dançar. Mas era uma dança que ninguém podia ver. Secreta, onde o mais forte era exactamente o que não se via. Era a raiz que desejei ter pelo chão até à terra, era a força com que queria abraçar e sentir-me abraçado, era o beijo solto que em breve se despegaria dos meus lábios. Mais escadas mesmo à nossa frente, à esquerda o bar continuava a acenar cheiros e cores. As escadas impuseram-se. O seu tom escuro de madeira velha? O ranger que sabíamos vir a ouvir? Enlançados pelos braços, dois passos chegaram-nos à escadaria superior. Olhares trocados. Os olhos dela eram espelhos glaciares onde se reflectia nada mais nada menos que a minha alma em desejo. Cada degrau era uma batida forte, um anúncio do que estava escondido e ia ser descoberto. Cada degrau era uma força contra o peito, era uma mão perdida que lhe tocava o cotovelo. A escada bifurca-se, intuitivamente sobe-se pela esquerda, ali já ninguém nos vê. A porta que aparece é de madeira, da cor das escadas. Os ruídos não calam o beijo, a mão não deixa de subir acima do cotovelo desenhando-lhe o corpo com a ponta dos dedos. Há um corpo perfeito que ela habita. Não foi mais preciso abrir os olhos para sentir as pétalas que caíram sobre nós. O último beijo foi no traço sublime que une o seio esquerdo ao peito pelo lado de fora do corpo, descoberto pelo seu braço levantado. Sair? Perguntei-lhe. Não… claro está.
Li-a mais tarde numa carta: “amanhã na murada de Alcochete junto ao Tejo, beijo”.
Ela não apareceu. Fui sentar-me na esplanada, com café.

Monday, December 05, 2005

anoitecer de dezembro


Sobre o rio mirava as almas dos meus pensamentos. Alguns deles não conseguia decifrar, passavam mais depressa que as nuvens. Sentado à beira da terra, desenhava num papel tudo quanto ainda era minimamente claro depois de tanto daquele vinho licoroso.
De facto, pelas veias rarefeitas corriam longos travos de mel. Mel.
Sobre o rio mirava as almas dos meus pensamentos. Mesmo daqueles que nunca tinha tido, sentia-lhes o sangue ferveroso, como o meu. Anunciavam-se novidades depois daqueles minutos ali sentado. O céu mudava-se como eu. Como eu escurecia-se, carregava-se, franzia-se, em breve começaria a chorar.
Sob o céu anoitecido caminhavam por ali outros tão viajantes como eu. Nem a chuva nos mandou embora. Colectivamente fomos como flores goteadas de orvalho, naturalmente, não fugimos, serenos. Sobre nós caíam as gotas do rio que se levantara.

danças comigo?

Danças comigo? Perguntou ele, pequeno, desaparecido. O som era-lhe estranho, o mundo parou e a visão girou em espiral a seu torno. Um fantasma via-se a si próprio, afastando-se, ganhando a necessária distância para tudo aquilo lhe parecer suficientemente real, como um filme de cinema. Parado o tempo, o som continuava como uma caixa de música a quem tinham dado corda a mais. A bailarina dançava freneticamente com todo o corpo de madeira ondulando ao sabor de baixos descontrolados que lembravam o bater do seu coração. Como os impulsos viajantes da música perdida entre aquelas paredes, o ritmo do seu pulso era já um rio de ansiedades, acelerado, pouco respirado. O copo na mão já pedia novo sorvo, o sabor do último trago do rum assustou-o. E o tempo não passava, detinha-se em cada passo dado da parede para o centro, por debaixo dos feixes clarividentes do retombante olhar para o lado que se adivinhava. As mãos perdidas, além de a esquerda segurar o copo, encosta-se a direita ao corpo, abandonada, mas tensa. Em todo aquele tempo pensou em abraçar-lhe a anca, segurar a alma, agarrar o pescoço, acalmar o coração, desaparecer para não se ver, ir de encontro às dela, passar-se no seu peito… mas tudo isso era demasiadamente extemporâneo: o adequado era resignar-se a uma existência tão vaga como a de segurar o cigarro esquecido mas já quase esgotado de nervos.
Os olhos dele perderam-se pelos lábios dela, denunciando irreversivelmente que dentro dele vivia uma chama. Tocaram mais altos os sons daquela noite, como que se os anjos empenhados e atentos, controlassem o volume das angústias. A intermitência das luzes dava agora a cada movimento uma dimensão próxima de uma sequência de fotograma sim, fotograma não. Entre a ausência total e a próxima visão pálida, os olhos dela viraram-se. O bar chamava-a. Não chegou a saber o nome dela.

Saturday, December 03, 2005

Perenidade de um dia...


Sentada, as paredes brancas resvalam sob a forma de silêncio. Observo o movimento da cidade: pessoas correndo de um lado para o outro, ao ritmo do baloiçar da minha perna esquerda. Passam por mim, atropelando-me com a sua indiferença. Analiso a minha poltrona de tamanho infinito, composta por pedras, alcatrão e beatas de cigarro que desenham puzzles de vidas monótonas...
O movimento que de pendular se torna inerte...Constato que a folha do calendário foi rasgada pela novidade. Os sentidos acordam com essa notícia e procuram diferenças: o cheiro de Dezembro, a cor do Inverno ou a luz dos casacos de lã.
Inspiro toda a atmosfera, acrescentando novos átomos de lassidão aos meus pulmões. Na verdade, a história repete-se, as horas cumprem-se, e só eu, absorvida pela passividade de uma perna esquerda que baloiça mas não avança, deixo-me estar, sentada, sobre a janela da minha vida, adormecida sobre uma vontade que não mais acordará...

Thursday, December 01, 2005

olha a cidade que te olha

Mesmo com a chuva cá fora a cair
o caminho continua,
repetem-se os passos
de um trilho que não tem onde ir
fechado pelas sombras das fachadas
dos edifícios e pelos vultos das almas cinzentas

a cidade olha-nos
solidária com as dúvidas que trazemos
no peito, nos olhos, nas mãos frias
que acendem o cigarro de inverno
com uma existência de fogo

e em nós, crescem as gotas do desassossego,
e olhamos para aqui, para ali, para fora, para dentro
e a coragem de olhar para nós passou
como um fantasma de comboio.

trazes o mar nos olhos (trabalhador do mar)

São escuras as vagas
Não reflectem mais que a lua
E as lágrimas doces
Sobre o sal do mar vivo,

são duras as malhas
das redes da vida,
que às vidas, por vezes
mostram morte.

São longas as noites seguidas
de sol sem luz
mais luz que a luz dos dias em terra,

são profundas as mãos
que tanto prendem como soltam
e vincados os traços dos saberes
que nelas habitam,

são claros os olhos
que já trazem consigo os mares
mesmo pousados em terra,
como que o abraço, o pacto,
fosse de vida, morte, amor,
fosse um laço que feito não se desfaz.

Thursday, November 24, 2005

somos comunistas

somos o vento de cada dia
carregado de braços levantados
mãos cerradas
rostos erguidos,
somos o caminho trilhado
no presente pelo homem novo do futuro.

Thursday, November 17, 2005

dia de mar revoltado

o que nos corre por dentro
nos enche de fogos e chamas vivas
as entranhas do nosso próprio tempo,
da vida que não levamos vazia
o que nos sussurram os ventos que uivam
à noite escura agitando almas,
o que faz sentir um corpo crescer
até aos limites do ser que é assim inteiro
inteiro de mim e de ti
inteiro do que fica no meio dos corpos,
aquele sangue pressuroso capaz de pintar quadros
em cada mundo por aí espraiado
coberto, às vezes, com ondas de espuma
tua
branca como uma manhã,
forte como a força da própria Terra
que nos puxa para um chão
que não encontramos no muro onde se escreve razão.
é o que nos eleva a filhos dos rios,
é o que faz entre nós e a primavera não existir uma única distinção
é gritar de pulmões amazónicos um colossal “Amo-te”,
vibrante por todos os ventres,
gigante como uma montanha acesa no princípio dos deuses,
quente como o mar que abraça o sol numa tarde sob o teu olhar.

Wednesday, November 09, 2005

serenidade

queres pensar sem estar
estar sem ficar em lado nenhum
ser pensando em não actuar
agir, sendo tudo por momento algum

queres viver, bebendo segundos
beber a vida em mosto doce
sem provar sequer o ar
que desde o nascimento ta trouxe

haver sem ter
nada na mão fechada
que por momentos agarra
areia e terra molhada
que tanto são como não
a alma que pensas ter no coração

Thursday, November 03, 2005

a morte com o coração a bater

é como estar morto,
sentindo que morremos,
esventrados com o coração
a pulsar de morte.

e estar vivo assim
não é mais que respirar soterrado
com o peso de um fogo aceso
pelos dias de um sorriso passado,
como estar morto preso
a ti próprio acorrentado,
sem ter refúgio em vida
senão o do gelo que se agarra à alma,
o do vazio de uma árvore de inverno,
negra, escura, na lua fria esculpida.

já não se desprendem beijos,
os abraços são despedidas,
já não arde o coração
por mais que queime ainda
o gesto, a alma, a lágrima,
a própria morte.

Monday, October 31, 2005

Poema de amor com final feliz

a ti o mar e as estrelas
das noites e das madrugadas,
a ti os reflexos de lua
caminhando até ao horizonte.
a ti o vento quente
o cheiro das manhãs,
a ti o nevoeiro das falésias
e os livros acabados de escrever

por ti nascem flores
porque lhes trazes primaveras,
por ti acordam palavras adormecidas
e caminham-se distâncias nunca percorridas
por ti e a ti se prostram as nuvens
se levanta o dia sobre o recorte da serra,
por ti se içam velas de navios
e rumam navegantes sem cais.

por ti as flores de cerejeira
e o sabor das amêndoas doces,
por ti as tintas nas telas dos pintores
por ti os beijos trocados nas ruas e nos jardins
por ti um colapso de morte sem fim,
um olhar para sempre guardado em mim.
a ti um beijo enviado nos ventos
que te acompanham nas viagens
e em todos os momentos.
a ti uma vida distante que fica a teu lado
como um abraço desde sempre até ao fim dos tempos.

Saturday, October 29, 2005

Poema de amor

a ti o mar e as estrelas
das noites e das madrugadas,
a ti os reflexos de lua
caminhando até ao horizonte.

a ti o vento quente
o cheiro das manhãs,
a ti o nevoeiro das falésias
e os livros acabados de escrever

por ti nascem flores
porque lhes trazes primaveras,
por ti acordam palavras adormecidas
e caminham-se distâncias nunca percorridas
por ti e a ti se prostram as nuvens
se levanta o dia sobre o recorte da serra,
por ti se içam velas de navios
e rumam navegantes sem cais.
por ti as flores de cerejeira
e o sabor das amêndoas doces,
por ti as tintas nas telas dos pintores
por ti os beijos trocados nas ruas e nos jardins
por ti, amor, desconhecido de nós e de muitos
que nos deixas sem descobrir a paisagem
pintada a cores.

Tuesday, October 25, 2005

A Caeiro

se há ou não curva na estrada
pouco interessa
porque a vida é esta aqui plantada
não outra que fique para lá.

se há curva, que curve então,
longe ou perto,
mas que não tires teus pés do chão
enquanto o momento for mais que o deserto.

se para lá da curva existes,
que existas pois então,
mas que antes da curva vivas,
agarrando cada instante sem que te escape da mão,

deixa a curva
se lá chegares, chegarás
e só aí haverá curva,
antes, agora e depois.

Monday, October 24, 2005

Variação sobre o Expressionismo (ou "vives como a morte, morres como a vida")

corre sereno o vento
que me afaga ausente
na encosta sobre o rio
que serpenteia entre as luzes do poente

em fogo as árvores despedem-se
do estio, do calor, da noite suada
e as folhas caídas no chão
lembram-me os pés descalços no verde da estação passada

chegaste e trouxeste a luz difusa
amo-te mais que a todas as outras eras
porque cheiras a terra molhada
vives como a morte
encerrando as flores
morres como a vida
e levantas-me a alma porque cheiras a terra molhada.

Variação sobre o Expressionismo II ( ou "outono")

corre sereno o vento
que me afaga ausente
nas margens do rio
que serpenteia entre as luzes do poente

de fogo as árvores despedem-se
do estio, do calor, da noite suada
sob elas as folhas caídas lembram-me
os pés descalços sobre o verde de uma estação passada

chegaste e trouxeste contigo a luz difusa,
amo-te mais que todas as eras,
vives como a morte
e és o dia mais sagrado porque cheiras a terra,
morres como a vida,
e levantas as almas porque cheiras a terra molhada.

Friday, October 14, 2005

variação do impressionismo

a luz rompe a vidraça
com o fulgor das chamas mais altas,
nu o corpo descansa no chão,
jaz um cigarro aceso fumegando
como quem insiste numa lógica que falta pensar.

denso o ar que respira,
suaves as melodias que ecoam
agora repetidas pela sala inteira,
como quem insiste numa dança que falta bailar.

e as luzes paradas, com fumo no ar
lembram a imensa vontade de ... parar
um segundo só para saborear a voz francesa de mulher
que em todas as cores canta pela minha vitrola.

variação sobre o surrealismo (ou os tempos sem definição)

era uma manhã fora do relógio,
sem calendário, apenas nuvens
em águas pela rua no chão ,
manhã de quê, outono inverno primavera verão?

e viajavam as vozes de vendedores
entre paredes juntas de casas apartadas
ecoando entre estações desencontradas
do tempo em que podias dizer o que nessa manhã
iria ser passado, outono inverno primavera verão,
como hoje no dia de amanhã.

variação sobre o classicismo

ah musas do outro rio,
que reflecte o céu a sul,
orlando uma cidade anciã
erguida sobre o sal,
portem meu corpo sobre vossos braços
e cubram meu rosto com folhas de Outono.

ah deuses de outras terras e céus,
levantem nosso corpos
em ascendentes vitórias sobre a escuridão,
façam filhos em nós
que nasçam com a força do vento
e empurrem as nuvens para descobrir o sol.

e flores, sorri quando me acolhem
nas vossas cores pintadas a fogo,
façam soar as flautas dos centauros
e dançar ninfas em meu redor.

Wednesday, October 12, 2005

estórias do vento norte

vazio, negro, singular
o cântico que se repete
em mim, como um vibrar
das ondas do mar,

entoa-se a si próprio
e flutua no ribeiro
que corre entre as árvores despidas
do bosque do meu olhar,
perdido no sol vermelho a poente
com o vento norte a murmurar
segredos por contar,
estórias para sorrir
que negamos ouvir.

Friday, October 07, 2005

Aparição

as chuvas caem formando uma cortina
que te serve de espelho.

do outro lado, desenham-se figuras altas, esquálidas,
pintadas a tintas através de um vidro fosco.

do teu lado, tu, numa aparição que colapsa
exactamente sobre ti.

Thursday, September 29, 2005

acordar sobre o mar, ali, naquela praia

e se um dia
quando a manhã te chegasse
rompendo o sono e o sonho
pelo fio de luz por baixo da porta,
trouxesse tudo novo,
como fosse primeiro vento de primavera,
ou tua primeira vez em corpo inteiro?

como fosse primeira vez
que fazes amor queimando a própria areia
com o fulgor que te cobre a pele,
mesmo no frio dos primeiros raios de sol
sobre o mar, ali, naquela praia.

como fosse o fim de um princípio
iniciado antes mesmo de nasceres
e que nessa manhã nova se mostra
como a flor do teu jardim antes fechada
ora viva como chama.

como os olhos se te abrissem hoje
e não antes,
certo agora de que um mundo existe,
palpitante, expectante,
onde faltava apenas tua vida,
por estar apagada, adormecida.

águas negras

os cabelos longos negros
em queda como águas,
cabelos índios do norte
à luz de uma janela fechada,
trazem distância
de um trilho estreito para a morte.

caídas ao longo de um anjo perdido,
as águas negras
escondem um beijo esquecido
da noite que foi noite até ser manhã.

do toque embalado na dança do olhar
cruzado entre o céu, a escuridão e corpo de mulher,
fica um sorriso para nos lembrar,
de um gesto desenhado no tempo
até que as rochas voltem a falar.

Wednesday, September 28, 2005

Vontades da Passividade!

Morte ao Sol

Menina que a lua torna a ver, a mente sente, o corpo não, não sabe o que poderá ser. Raio de luz que cega ao ver, será que a noite se vai apagar?
A espera ainda espera por sobreviver, tal dose de anseio ao continuar, tentando impedi-lo de voltar... só vontade não chega quando a voz pode e não quer, e, tão alto grita o silêncio que quem ganha é a razão que há muito me abandonou.
Não sonhes que o sonho pára para ver e a noite será enquanto o Sol quiser!

curva e contra-luz

a pele que não se vê
deixa-se adivinhar pela curva
em contra-luz de perfeição,
como o caminho que nos chama
para uma liberdade temida
que estremece o peito
e ascende com a respiração.

descer pelas sombras do arrepio
que levanta a carne da sedução
como um sopro que não se sentiu
de dois lábios em aproximação,
de encontro corpo a corpo,
derramada sobre nós a luz e a escuridão,
de encontro o teu peito a minha mão.

quente, breve toque,
um suspiro que se desprende,
no fumo de um cigarro total
um braço enlançado,
pudor esquecido no teu cabelo que pende,
leve,
semente de um prazer alcançado.

Monday, September 26, 2005

alheio como eu, entre os outros

e se nascesses
estupidamente consciente
de que este mundo não é teu
não lhe pertences,
é antes fatia larga de breu
do nocturno pesadelo recorrente.

e se acordasses
como um acorde fora de tempo,
uma pausa descontente,
uma pauta estridente,
e no mundo a que não pertences,
à tua volta entendesses
rostos, olhos e contornos,
de iguais entre um mundo que não reconheces.

entre aquelas chuvas estranhas,
entre as folhas caídas do outono,
o pálido amanhecer do teu próprio ser
é agora a força que te vem das entranhas
por saber
que entre um mundo alheio,
alheios estão quantos conheces e vais conhecer.

Sunday, September 25, 2005

anoitecer de setembro

raiam os dedos dos deuses pelas nuvens no final da tarde, o mar, quieto, reflecte o céu e o olhar dos amantes de todo o mundo.

Saturday, September 24, 2005

passou o eléctrico... corre para o apanhar

com o sol
as horas cheias
e a noite passada
em sono descansado,
acordamos em dias sem sombras de nada.
um vento rasgado
que nos levanta os olhos semi-cerrados
com gosto por um horizonte longe
que marca o mar e a terra sob o céu.

são dias assim, que passam
sem descortinar o que nos vai por dentro,
as chamas apagadas ou as cinzas ressuscitadas,
as ventanias calmas ou as brisas desenfreadas,
os sorrisos tristes ou as lágrimas apaixonadas,
são dias assim, que passam
sem passar à nossa passagem,
porque ficamos nós próprios sem passar
na linha ténue do nosso olhar.
são dias assim, que passam,
à espera de uma mensagem
que nunca nos disseram enviar.

são os dias assim, que passam,
à frente da carruagem do eléctrico que passou
para nos levar.

Thursday, September 22, 2005

À espera dos pombos...

Estático

Até onde vais tu ó estupidez, que, ganhas asas e as deixas voar… crias as tuas raízes no pleno da tua liberdade e corrompes o mundo inteiro sem nunca saberes a razão das mentiras. Sim! Aquelas que te consomem, e, te fazem viver na angústia de teres mais um dia infeliz. Aquelas que mesmo não sabendo se tornam a tua vida, ignorando o que os céus alto bradaram no inicio da tua existência, essas que por ti padeceram à espera do teu caminho…

A merda também vence...

Outro afinal!

As sombras não desaparecem quando a luz se esvanece… bem pode a escuridão tentar apagar as suas pegadas, bem pode tentar renascer e começar um novo ciclo, mas sem matar primeiro o corpo é difícil ressuscitá-lo! A esperança é sempre a primeira a aparecer, “brilha luz que’inda havemos de vencer!”. As memórias nunca hão-de desaparecer, continuarão a atacar as ideias, fazendo delas um nó cego que aparenta ser fácil desatar, “ó escuridão agora que a tua estrela brilha deixaste-te ofuscar…!”

Matemáticas aplicadas...

Equação Irracional

Por proporcionalidade inversa à do copo, cresce o esquecimento de outra lua com o brilho igual a todas as anteriores. Outro copo e brindo a memórias já apagadas que em fugazes momentos me lembram o que não sou, e, o que pensei não ser… sou o resto do que em mim não existiu!

sem palavras


sem palavras
podem ser criadas mais madrugadas
que num inteiro poema
com todos os versos,

podem nascer mais estrelas
que no momento original
do despontar universal
do tempo, da luz e das mãos dela,

podem crescer belas
mais flores que durante o baile da primavera
nascer uma montanha em pleno deserto
pode ser dado um beijo com mais cores que uma tela
mesmo que as palavras não estejam perto

impermanência

se cada momento passa
em impermanêcias repetidas
de tempo e existências
qual reinventadas vidas perdidas,

vida é soma,
subtraída de si própria,
multiplicada por mim,
dividida por nós,
num momento integral
limitado pelo infinito
do horizonte
que não alcançamos.

Wednesday, September 21, 2005

antes do início do tempo

viver entrelaçado com a raíz
que nos cresce dentro,
e nos liga a uma terra
que não podemos abraçar
é estar sob o olhar
de nós próprios, no ar
como uma folha verde
caindo antes do início do tempo.

o chão, feito de terra,
dá luz por espigas de trigo
em onda amarela,
vaga ténue, chama,
onda pequena, fogo,
soprado pelo vento do sul
que nos afaga, quente.

por cima e em toda a volta,
um mar de bálsamos sem odor,
lembra-nos a total entrega
a um novo mundo sem dor.
embriagados de nós e dos outros,
dos licores e outros sabores,
sentimos os frutos vermelhos,
gosto de ti e do beijo que trazes
nos lábios de mulher.

Tuesday, September 20, 2005

Nota - Variações sobre a Lenda da Moira Encantada

Os posts com os títulos "Às portas do Sol", "Choro-te Moira", "Taberna Eterna" e "Choro-te Cristão" são variações sobre uma lenda de Setúbal que tem por nome "Lenda da Moira Encantada". Dispenso-me a narrar a lenda neste post. "Às portas do Sol" é uma variação da lenda na óptica de um narrador não participante. "Choro-te Moira" é a lenda do ponto de vista do pescador cristão. "Taberna eterna" é novamente uma visão externa narrativa mais incidente sobre a Moira Encantada. "Choro-te Cristão" é uma variação da lenda na óptica da própria moira.
post scriptum. Portas do Sol são uma ombreira quinhentista das antigas portas da muralha da cidade de Setúbal, a nascente da muralha, ficam hoje na zona da cidade chamada comummente "miradouro". A ladeira é uma pequena travessa com uma também pequena escadaria que fica em zona adjacente às Portas do Sol e onde, reza a lenda, ficaria a taberna do pai da Moira.
A pedra furada é uma formação geológica única no país e no mundo, de origem enigmática por ser um arenito ferruginoso com variações anómalas de compactação. À vista parece uma enorme pepita de ferro oxidado.

Taberna eterna

na divisão,
cárcere de dias e noites,
mesmo junto ao cheiro dos homens,
o véu encobre no escuro
o rosto árabe, os lábios de frutos.

obriga assim a própria condição
perante deus, de ser inferior,
cativo entre os outros,
vivendo entre grades de prisão.

a beleza contida,
agrilhoada por cimentos,
véus e trajes, viaja por uma só noite
e não volta a respirar o ar da cidade,
da ladeira.

por entre as portas
o sol ainda raia
em diálogo com um deus perdido,
desentendido entre si próprio.

o feitiço não se rogou a deuses
nem sóis nem luas,
e fica um rio, um mar,
e os ramos tristes das árvores nuas.

e o pescador pode aguardar
o seu amor por uma troca de olhares
que ficou ali, antes do início do tempo,
na ladeira, junto à taberna.

E nunca mais ninguém a viu,
em parte nenhuma,
a não ser as lágrimas que caem
ainda hoje em dias de chuva.

Choro-te moira

vi os teus olhos entre
os raios da luz espaçada por negro
da noite
entre as apertadas paredes da calçada
e mesmo antes do feitiço tinhas alma encantada.

um espectro de deus sem cruzes,
nem tormentas,
sem tortura nem penitência,
cruzaste a brisa quente do meu rio
e tremeste as chamas dos candeeiros
da ladeira original.

um colapso de expansão,
percorreu-me, como uma canção
das próprias águas calmas do meu mar,
e agora rezo a um deus que mora só no meu coração,
sentado nas pedras tristes deste chão.

choro o teu encanto que te levou,
rezo por um amor que nasceu,
me fez amplo e desejar a alva
para contemplar o voo do teu véu.

rezo ao deus que não desfez
feitiços nem quebrou a dura vontade
de um mouro morto e frio,
choro por uma mulher que chora por mim,
em encanto encarnado na sua desencarnação.

rezo ao sol que se levanta sem te poder iluminar,
porque a sombra de uma mão maior que eu te escondeu,
espero-o pela sua porta donde avisto meu leito e seus barcos
que não tornarei a pisar,
choro à pedra que me dizem ter-te escondido,
e que mais não me dá senão um grito já mudo.

Choro-te Cristão

aqui me ajoelho
a tuas vontades,
deus meu e de todos os mouros,
nas salas escuras que são uma só,
as da minha clausura.

meus olhos não alcançam
para lá dos muros que me cercam,
o sol não entra em tua casa, pai,
a àgua que escorre nas paredes velhas
são lágrimas minhas pelo mundo que não vejo.

a noite surgiu-me nova,
rasgada por olhares trocados,
e por beijos inventados,
fiquei ali para sempre.
ali na ladeira onde agora moro
desaparecida e triste.

e choro-te, pescador de Cristo,
sabendo que me choras a um deus,
choro-te nos dias etéreos
que já não vivo perante ninguém.

choro-te na ladeira, na calçada
na porta, no vento,
e na escada,
nos raios de Sol, nas chuvas
e nos raios da noite de trovoada,
nos flores da serra,
na pedra furada,
e nas ondas do teu mar,
choro-te na minha eterna espera.

aqui continuo, por ti, pescador, homem,
encantada, numa prece serena
por sentir correr-te em meu sangue,
percorrida no corpo por tua mão, nua.

Sunday, September 18, 2005

Às Portas do Sol

Porque choras, poeta sem papel?
Porque rezas, derramando sobre o empedrado
as lágrimas do teu rio salgado?
Porque ficas procurando numa busca sagrada
as portas do Sol,
esperando os raios encantados dos cabelos morenos,
e dos olhos moiros que viste na noite
pela calçada mal iluminada?

Espera, cristão,
que nenhum deus te acode.

A taberna, na ladeira estreita,
está deserta de olhos negros,
de lendas de mulher perfeita.

Restam-te dias e anos,
e uma pedra furada
que te acompanhará no nascer do sol,
a nascente sobre o rio triste
em que pescavas.

A moira chora, também
mas as pedras dessa ladeira
que chora contigo,
não a verão mais passar nas noites escondidas.

Espera, Cristão
que nenhum deus te acode.
E o teu amor durará para lá da luz
das portas do Sol que ficarão para o lembrar.

À minha cidade

Descansa na encosta
com um olhar sobre o Sado,
as neblinas das manhãs
cobrem praias de gentes
nas praças abaixo do plátano.

Alto levantam-se as vozes
nas janelas das pequenas vielas,
com sons do passado tão presente
lembrando um povo de mulheres
velhas e belas.

No céu azul do rio
navegam vidas ao sabor de ventos
norte e sul,
e ainda vivem canções de poetas
do coração desta cidade.

Abraçam-nos os fumos do carvão,
as calçadas desregradas,
o peixe de manhã pelo chão,
e as vozes carregadas.

E a Serra dá-se numa entrega
universal aos que a querem,
lembrando o imenso poder
da sua sabedoria intemporal,
das flores que nos oferece
a cada dia que já contemplamos sem saber.

Friday, September 16, 2005

Locomotiva

O som é metálico,
a força, humana,
o ritmo, não.

A máquina não cede,
as mãos fortes
e os braços de homem
martelam a continuidade
dos sons, da matéria
da transformação.

Pelo claustro fechado
ecoam as palavras do ritmo
escravo das horas que não passam
e do pulso impossível
do combustível asfixiante.

Ali dentro, entretanto,
não entram raios de dia,
é permanente noite oleada
na prensa, no torno,
na bancada.
O desperdício manchado
por vezes do próprio sangue
é a malha com que se tece
aquela Humanidade.

O pão é dali que vem,
dos claustros e corredores apertados
dos trabalhos desenfreados
do martelo, bigorna,
forno e alicate de pressão,
A esperança é dali que vem,
como locomotiva latente,
bem presente,
quando unidos cantam hinos
de libertação.

Motivo inverso da queda das pétalas

o silêncio faz de parede
pintada de cores sem luz
entre um e outro
erguida com o cimento
das letras escritas
em palavras ditas
que ficaram para trás.

por momentos
espreitas por cima de um muro
caem pétalas do alto,
como em Macondo,
e o chão é tapete de amarelo,
com o sorriso das árvores sobre nós.

Crónicas da espera do amanhecer parte I

Inimigo Perfeito

O sono ainda se deixa importunar por memórias tão fracas que se julgavam embebidas no esquecimento, ou será algo fingido para entretém de quem não tem direito a sonhar? No momento pouco exacto em que fogem ao presente, existe a esperança da sua sobrevivência, talvez nunca necessitem… a sua chama ainda consome ar e no meio da poeira o respirável ainda consegue ser vento, perdem-se, ganham-se novos significados, amplificam-se e desvanecem à medida em que vão sendo forçadas para combater o vazio, mas eu… eu só queria conseguir dormir!

Thursday, September 15, 2005

O futuro que não aconteceu

Gostas que te reparem nas mãos finas
vives um mundo teu, onde gostarias de estar.
intensamente, entregas-te
em teus próprios braços,
numa paz tua que trazes escondida.

Trazes contigo momentos duros
dum passado lembrado
que vês com a serenidade
dos outros esquecida.

Não vais embora nunca,
porque perdura a vontade
inexplicável de ficar
aqui, junto ao que não queres fazer
mas não consegues deixar de amar.

Wednesday, September 14, 2005

Superfície rara

Pela noite
ininterrupta, perpétua
e infinita,
cheira a minério,
cobre,
ferro.

Sem auroras,
o fundo é escuro, estranho
e nos pulmões
cheira a minério,
volfrâmio,
estanho.

Negros como o carvão
estão já os sonhos dos filhos
em casa
em noites brancas como cal.

No fundo ou na superfície rara
cantam
pelo futuro de mãos dadas
o orgulho no corpo e na cara

Tuesday, September 13, 2005

Campos por esse mundo fora

vergados no campo
o peso do sol nos dorsos morenos
e as mãos envelhecidas
de dedos talhados
em lascas de madeira
pelas torcidas
tardes entre a poeira
nevoada do trabalho.

tarde, manhã,
tarda a terminar
a jornada interminável
manhã, tarde,
já não nasce tristeza nos campos,
nem resignam as mãos,
nem dorsos vergados,
não morrem ali talhados os dedos
nem os rostos das mulheres,
nem os olhos negros
deixam de olhar o horizonte
de dias melhores.

dorsos morenos,
nus nos homens
sob o lenço das mulheres,
rostos erguidos
horizontalmente no futuro
vertical da humanidade

nascer

já sei o que foi
aquele monte de livros
aquela porta aberta
a fresta de luz pela janela
e a folha caída da estante,
ondulante no ar rarefeito
como dançando numa melodia
frustrante e bela.

sei o que foi
o anjo quebrado
o olhar lançado
o baile encantado
a primavera perdida
pelos cantos da vida

sei o que foi
a esquina dobrada
a flecha disparada
o tempo passado
e os minutos de cada hora
da estrada percorrida

sei o que é
um poema sem rimas
uma prosa sem frases
um grito nascido do ventre
e um sopro num gesto

e depois há tudo e nada
estar, ser, desaparecer
permanecer, ganhar e perder
há caminhos rectos
outros incertos,
rumos de vento
e correntes de tempo
que nos fazem nascer,
e nada conhecer.

Monday, September 12, 2005

Saido do fundo do baú para justificar a demência...

Indagação???

Tudo começa quando acaba

A razão desgarrada de um sentimento impossível de suportar, pode chegar a níveis de loucura e inconsciência, que, nunca pensamos serem atingíveis ... mas a maior insanidade são os momentos intermináveis de lucidez e racionalidade em que no apercebemos o quão erróneo é o nosso amor ... apenas nos consumimos num amargo grito silencioso...

Simples Concordância


O único controlo que tenho sobre mim são as lágrimas que derramo pela infeliz tristeza de não saber se as tuas reflectem a realidade da situação criada em nosso redor , será talvez melhor viver a mentira?? Milhares de pensamentos fluem em mim e não consigo agarrar nenhum , talvez seja este vento que subitamente se levanta em tons sádicos que me faz abstrair da violência das tuas palavras que no mesmo tom doce e familiar que aprendi a amar agora irrompem como facadas nas costas. Apático ajudo-te a criar um mundo por nós criado , e sem vontade própria dou-te razão... já que a minha se esvanece memórias...(existência?)

Vácuo

Eu só queria voar, nem sequer peço asas, a braços de anjo tudo se esvanece… quero fugir... não de ninguém mas de mim, quero desaparecer. Não! Não me iludo mais com fugazes momentos em que falo com paredes, continuo a somente ver o corredor sem fim enquanto elas passam... agitadas por viver e eu, eu continuo em lenta marcha devido a meu fardo crescente á medida em que me abraço. Passo a passo e cada vez mais lentamente abrem-se portas ou descuram-se saídas, só me peço meu corpo e meu pensar na impossibilidade de a mim não voltar.

Caminhante Nocturno

A cidade grita á medida em que penetro em seu ventre, mas em passos cuidados descuro a sua razão que me acompanha em tal fúnebre marcha forçada em busca de descanso. O ruído aprisionado neste citadino silêncio alimenta a decadente chama consumidora de toda a decência restante, marcando compassadamente meus passos que me encaminha ao único leito ao qual me permito, libertando-me a tal amizade que aparenta nunca ter existido em nós.

Já depois do ainda

Ainda dura a noite esquecida
e o sol que se levantou depois,
já ergueu perdida
a flor e sua manhã,
o manto que nos cobriu
pele e alma
é agora a tua voz
distante a quem ouviu.

Ainda duram os céus negros
do alentejo
e a lua que te reflecte,
já levantaram as galáxias
que não sabes,
e o frondoso verde do jardim
é o toque da tua mão
que me percorre sem fim.

Sunday, September 11, 2005

o café são os outros

O cigarro queima já os dedos
por sustentar a existência
frente ao papel em branco
à mesa do café

os quadros nas paredes
dizem que as cores falam por nós
nas mãos dos outros
que nos amparam o ser

as pedras da calçada lá fora
lembram-nos os passos por andar
e a viagem pela estrada
que havemos de trilhar

entre nós e o nada
desenhou-se em fumo
um espelho
com o esmagador reflexo
do nosso próprio olhar.

cavaleiro, eu?

cerrou o pano
não está ninguém na boca de cena.

caiu vermelho
na sala escura.

estranho que não tornem
as luzes para acordar
os que dormem
na tribuna alta sem reparar.

já não estão vivos actores,
dramaturgos, encenadores
cenógrafos pintores,
os carpinteiros
nem maquilhadores.

caiu vermelho
na sala escura o pano já sem cor.

...-te

porquê o som
que ouvimos
nos minutos e horas,
o sopro que sentimos
nos arrepios do dorso
a cada olhar,
o ar que escapa
no peito sem ficar,
a lua que nos lembra
que existe sempre
onde cair na noite sem lugar,

porquê as ondas do mar
a luz estelar
o vento quente
o sorriso da terra que não mente
o abraço permanente
dos cardos da última semente,

porquê não saber
que águas são as que correm por ti,
sabendo exactamente
os contornos dos fogos
que acendem em mim?

As mãos

O teu corpo pintado
num quadro de tempo,
de cada instante
perpétuo.

O meu corpo apagado
num pedaço de pano
de cada momento
efémero.

E no chão molhado
As mãos
desenham juntos
os corpos suados.

Saturday, September 10, 2005

As putas

Vaguear perdido
em ruas estreitas
vielas

vinho nas mesas
no balcão
nas veias perdidas
do teu próprio perdido coração

espreitas pela porta
empedernida
à luz escura perpetuada
no soalho partido
onde espalhas vinho com pão

elas chamam-te
com ou sem razão
ficas estendido
de maos estendidas
para o copo vazio
sem mais gota de tesão

Friday, September 09, 2005

Alvoradas

Não rasgaram os céus crepusculares
Não nasceram os sóis nem luas
Nem vieram estrelas vibrar
Acima de nós,

Não correram as ágeis águas
Na margem do rio onde não nos deitámos
Nelas não reflectimos um beijo que não demos
Nem sentimos vagas de ventos que não sopraram,

Não somos amor que não tocámos
Corpo que não acendemos,
Nem pele ou curva que não seguimos com o dedo
à luz do candeeiro ténue apagado

Não existimos, pois
sem o peito cheio do ar que não respiramos,
nem os sabores do fruto que a árvore não deu,
não nasceu.

Não, não somos
o que negamos, o que não sentimos
não somos a água que não correu em nós,
não o vento que não soprou,
não a boca que não beijámos
e não o corpo que não amámos.

Somos a lama que amassámos,
com os pés com que nascemos,
mesmo que por nós não tenha nascido
um sol, nem lua,
nem tenham corrido águas,
nem soprado ventos,
por não sermos nada
ao lado da montanha.

Open-Source Poetry

Simples.

Certamente muitos de vocês conhecem o conceito de "open-source". O Código-fonte aberto é um conceito associado à programação. Basicamente, significa que o utilizador de um software em código aberto tem acesso ao código fonte, às linhas de programação que dão origem a esse programa, tendo assim a possibilidade de conhecer na íntegra as operações que aquele software executa na sua máquina.

Em muitos casos, é dada ao utilizador também a oportunidade de alterar o código-fonte para ajustar o programa às suas necessidades.

As regras do open-source poetry são semelhantes.
O código fonte é cada um dos textos publicados no blog, à excepção, claro, deste inicial "disclaimer". Todos os textos aqui colocados estão portanto à disposição de todos para que os alterem.

1. As alterações são feitas sob a forma de comentários ao texto inicial.

2. As alterações aperfeiçoam os textos e não são nunca consideradas plágio.

3. Quando se utilizar um texto, alterado ou não, deve apenas referir-se a fonte (neste caso, este mesmo blog) e o texto original.

4. Quem proceder a uma alteração a um texto, seja em prosa ou verso, não pode impedir que sofra outras alterações.

5. Cada texto, original, ou alteração deve, quando utilizado fora do blog, ser acompanhado da assinatura (nome ou nick) com que for apresentado no blog.

6. Qualquer tipo de alteração é legítima: a eliminação de frases, palavras e partículas; a substituição ou o acrescento.

Este desenvolvimento do Cadáver esquisito não está patenteado!

Boa prosa, verso e alterações!