de negro, curvada e de lentes fundas, os anos cravavam-se-lhe irrevogavelmente na pele. pela cor, qual mortalha dos pés à cabeça, o marido havia partido. encostava-se numa bengala com o seu braço pequeno, e as pernas serviam-lhe apenas para não cair. andar é manifestamente uma tarefa de facilidade relativa.
pequena, resmungava palavras incompreensíveis enquanto se arrastava lentamente até à base da escada da bica. lisboa tem destes cenários que nos fazem conseguir respirá-la. a bica. a olhar para cima, a calçada estendia-se umas centenas de metros numa subida de passo íngreme e difícil. o elevador da bica, esse, avariado estava, encostado a um canto, com tristeza latente na chapa centenária.
mas ela tinha de subir. não conseguiria porém fazê-lo.
encostou-se na esquina pequena que cruza a calçada com o largo onde ainda descansavam os últimos enfeites dos santos. ali, mesmo onde habitualmente poderia simplesmente entrar no elevador. respirou, duas sôfregas respirações não a deixaram falar com quem ali estava, nem pedir ajuda. meteu-se ao caminho, pisou um degrau. escorregou, ia caindo. na janela uma senhora queixava-se das grades que ali tinham posto, bicudas, aguçadas, que há dezenas de anos tinham levado o dedo ao seu filho que ali brincava.
de negro, envelhecida, de olhos fundos mais que as lentes, subiu a calçada com um trabalhador da carris pela mão, fora de serviço.
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1 comment:
como será no dia em que os nossos ossos forem mais velhos q nós...?
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