Thursday, November 16, 2006

onde foi?

havia flores por ali, pálidas. caídas tristes pelo chão em torno dos montes de terra coroados de cruzes brancas. algumas lajes carpiam ainda mortes antigas. das mãos velhas e sulcadas dela, pendiam lágrimas em flor. dos olhos, acolhidos pelo lenço negro que cobria o cabelo branco, o mar nascia em ânsias, em raiva, em dor.

debruçada, como um manto negro sobre a campa incógnita, abraçava o tempo que passara. perto de seu braço esquálido descoberto pousava aquele corvo negro de agouro. o vento trazia um sopro a morte e a ribeira mais próxima ainda fedia de putrefacção. doce ar o fora, hoje tão amargo que lhe perfurava os pulmões.

não soluçava.

ao longe ainda recordava as três últimas noites em que não dormira. mas todas lhe eram apenas rápidas passagens das páginas de um álbum de fotografias tristes. há três noites, os tiros, as violações, o escarro na cara, os seus santos partidos pelo chão. na casa do lado, a mesma coisa. do outro lado da rua, morte. a estrada de terra sangrava pelos que a caminhavam. depois era o choro e os abraços entre iguais, a lama humana tornando-se cimento.

foi preciso passar uma noite em branco para enterrar a devastação que por ali jazia. todos, todos morreram de olhos abertos, estranha ocasião.
outra noite para trazer a água para beber que havia sido cortada.
outra ainda se passou em branco por medo.

ali estava. tudo isto lhe passava agora distante, ténue, porém corrosivo.
os outros já tinham abandonado o campo daquelas almas enterradas, ela persistia.
ainda lhe queimava a pele da face, a saliva do homem de arma em punho. mas a violação foi banida das dores, pela sua dignidade.

quando levantou a cabeça, zás! Uma bala trespassou-lhe o crânio desiludido. o seu sangue foi dado de beber aos mortos. as flores tornaram-se cardos. o corvo, esse, esvoaçou assim que se fez noite.

3 comments:

Anonymous said...

"dar de beber aos mortos"... não sabia q conhecias essa expressão.

miguel said...

expressão?

Anonymous said...

"dar de beber aos mortos" é um ritual pagão (não sei a origem), em que se derrama um líquido para a terra, normalmente água (em Portugal deve ser vinho!!). É uma forma simbólica de alimentar os mortos, deve ser um sinal de respeito, acho eu.