Monday, July 03, 2006

conto do sul

Há muito tempo que não vinha à terra onde nascera e conhecera o primeiro olhar de mulher.

O próprio cheiro lhe era agora desconhecido e o éter do ar penetrava-lhe os pulmões como estiletes ensanguentados, mas cravados de saudade. Mesmo que lhe pedissem, não saberia dizer porque partira anos atrás quando os primeiros pelos lhe irromperam a pele da face. Mais matizada a sua tez, um escuro suado, de rosto áspero tanto quanto o olhar negro, voltou.

E a cada passo, uma luz líquida ilumina cada canto que olha. Uma escuridão púrpura de veludo cobre um passado que ali não viveu. Não está muito diferente a terra. Claro que o carvalho ao fundo da rua desapareceu para dar lugar a uma festiva fonte em granito importado, mas os carvalhos hoje em dia já não davam abrigo a ninguém, porque os velhos já não gostam da rua.

As casas ali se plantavam estóicas, registando na cal as memórias, como películas de filmes que ali se guardavam apenas para se mostrarem a quem soubesse falar com as suas paredes. O que era uma arte tão perdida, que hoje poucos poderiam desvendar tão ricos registos.

Calor branco que amarelava o ar, as árvores e a pele suada dos homens, deixando imaculada a alvura das mulheres vestidas de sedas longínquas. Era assim por ali, desde que o sol havia decidido deixar de se pôr naquela terra porque se apaixonara pelas flores das cerejeiras tão diferentes que em cada uma dançavam as cores do fogo, daquele fogo escuro de fogueira à beira da praia pela noite cerrada.

Vestia um linho leve e branco no tronco, de linho negro cobria as pernas, por onde se lhe assomavam os pés sujos em duas sandálias de terras exóticas que ficavam do outro lado dos oceanos. O saco que trazia pendurado nas costas pesava apenas duas folhas de papel amarelado. As mesmas que dentro dele repousavam à espera de novas escrituras.

Ali passou, pela avenida central onde no chão ainda rebolavam as mesmas pedras. Olhou a vitrina do barbeiro onde se liam hoje os mesmos preços de antes e pensou que aquela fora a única casa onde não tinha usufruído de um serviço enquanto ali viveu. Não seria pois tarde.

Após pagar, rasgou no peito esquerdo um golpe com a navalha que comprou ali mesmo. O sangue falava a língua da saudade e da beleza guardada no coração.

Pela mesma avenida, de peito em sangue, cumpriu o que ali o teria levado.
Depois voltou atrás e partiu. Bastou-lhe o olhar verde da cigana fulgurante com quem havia subido a mais alta das cerejeiras num dia distante. Foi nesse dia que as flores se tingiram de fogo e chamas e o sol desde esse dia as contempla, derramando ouro sobre a terra.

Caminhando rumo ao longe, puxou das folhas que trazia. Nelas se inscreviam os nomes das cidades, das vilas e aldeias vagabundas por onde pulava. Finalmente, acrescentou o nome da sua terra às folhas da sua vida.

1 comment:

Anonymous said...

Às vezes lembras-me um Miguel a quem chamavam Torga.
Gostei do teu conto, bateu-me uma certa nostalgia enquanto o lia.
Eu também tenho uma terra, mas é como se ao mesmo tempo fosse e não fosse de lá...
Sou, porque não consigo deixar de ser, nunca me esqueço dela.
Não sou porque estou cada vez mais distante, não me lembro dos velhos, não conheço os novos, só me dou com a família. Os putos com quem brincava também cresceram, alguns tornaram-se snobs e fingem que não me conhecem. Os rapazes agora tratam-me como uma mulher, não os consigo ver da mesma forma e tenho saudades de quando eramos pequenos.