Thursday, July 20, 2006

raíz da terra

verde. era assim quase tudo para onde olhássemos naquela pequena terra desenhada nos confins do continente, onde ele se encontrava, a pique, com o mar que reflectia sempre o sol nascente abrindo as vagas à luz do dia. as casas eram rentes, brancas entre as folhas largas das árvores antigas. e muitas, as mais pequenas, plantavam-se entre cajueiros do tamanho de quintais que escondiam as paredes tímidas das cabanas.

as portas, intervalos nas muradas, tinham sempre os portões abertos e muitas vezes crianças descalças seguravam pequenos saguis enquanto lançavam as suas pipas ao vento da tarde. assim tinham os deuses deixado aquela terra, a si própria e à vontade das árvores que a abraçavam. por todo o lado se pousavam pacientes aves, coloridas, atentas. muitas falavam e ainda hoje contavam estórias de tempos mais antigos que a abertura do mar e o reflexo do sol.

era uma cidade escondida de si própria, perdida entre as raízes do tempo, como se ali ainda habitassem povos arcaicos. de facto, as madrugadas ainda traziam cânticos que ressoavam do interior da terra, quentes e poderosos, pesados do tempo que passava.

estranhamente, não chovia, embora as humidades fossem tantas que amiúde os corpos não precisavam suar.

na cabana de cima, de onde soavam tambores ao anoitecer e crepitavam chamas dançantes em movimentos de mulher, vivia a família mais velha da terra. a mais velha, senhora de avançadas eras carregadas no traje e nos olhos, seria das poucas que ainda hoje lembrava a língua das serpentes sibilantes, antigas e primordiais filhas dos deuses desertores.

ali os dias passavam sem que os contassem, como as horas sem registo em nenhum ponteiro. mesmo a lua passava renitente, esperando poder ser a referência de um calendário por inventar. por isso, nunca saberemos em que dia a vida se desprendeu da raiz da cabana do monte. nunca nos saberão dizer a que hora, mês ou ano, o manto da morte pendeu donde se sustinha, caindo sobre os tambores daquela casa.

saberemos apenas que no raiar do sol seguinte, tão abraçado pelo mar quanto antes, mas sem vaga aberta à sua passagem, a terra acordou diferente. Nessa madrugada soaram cânticos diferentes, fatais. ao anoitecer, o sol, deixou, teimoso, ficarem deitados alguns raios seus sobre as plantas, alaranjando o verde infinito e o céu que resistia à escuridão. nesse ocaso arrastado, não troaram tambores. com a noite, choveu.

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